Pandemia do coronavírus interrompe temporadas de espetáculos e impede artistas do teatro baiano de trabalhar.

Terceiro sinal. O burburinho de uma plateia cheia viaja por entre as cortinas até os ouvidos de quem está prestes a entrar no palco. Na coxia, além dos colegas de elenco uma única companhia: o frio na barriga que jamais abandona quem faz teatro. Uma rotina como essa é o desejo de qualquer artista, e era o que vivia, de novo, a atriz baiana Camila Castro.  A estreia da nova temporada de A “Última Virgem havia chegado. O espetáculo, dirigido por Celso Jr e adaptado do texto ‘Os sete gatinhos’ de Nelson Rodrigues, voltava a cartaz nos palcos do Teatro Gregório de Matos, em Salvador, para uma temporada prevista de três semanas, entre os dias 12 e 29 de março de 2020. No entanto, foram apenas quatro apresentações e uma temporada interrompida pela chegada da pandemia do coronavírus.”

Espetáculo ‘A Última Virgem’ teve temporada interrompida pela pandemia do coronavírus (Foto: Divulgação)

“Dia 15 (de março) foi o último dia de apresentação, foi a primeira semana de espetáculo e a gente já sabia, sentia pelo clima das coisas, que algo grande estava por vir, mas ainda nos últimos dois dias a gente higienizou o espaço, passava álcool em tudo. No dia quinze, fizemos uma apresentação. No dia dezesseis, tudo fechou”, lembra Camila. Foi em 16 de março que Salvador anunciou suas primeiras medidas restritivas com a suspensão de aulas presenciais e fechamento de cinemas e teatros, dentre outras determinações. Dois dias depois, os teatros da capital – e da maioria dos municípios baianos que seguiram as mesmas medidas de Salvador – foram fechados se tornando, com o passar dos meses, o único tipo de serviço que não teve episódios de abertura parcial ao longo da pandemia.

Naquele primeiro momento a sensação de suspensão e os figurinos e cenários guardados no teatro à espera da hora em que seria possível subir no palco de novo. “Eu estava bem iludida, como a maioria das pessoas, achando que começou em março e em julho já estaria tudo bem. Pensei que em maio, junho a gente voltava com o espetáculo. Estava acreditando nisso”, relembra a atriz.

 

Foi só em abril, um mês depois do fechamento, e com a chegada do período de chuvas em Salvador que a ficha começou a cair para Camila. A atriz acumulava em ‘A Última Virgem’ a função de produtora, e recebeu um telefonema da administração do Gregório de Matos com o pedido para retirar do teatro o cenário e todo material da peça, justamente por conta de problemas com a chuva. “Me vi naquele teatro vazio. Nosso cenário é bem pouco. São panos e seis cadeiras. Eu cheguei e as seis cadeiras estavam lá no meio do palco, aquele teatro vazio e eu tendo que levar as coisas todas sozinha. Foi bem estranho. Nesse momento eu entendi que não ia voltar tão cedo. Aí, eu entendi que ia demorar bastante”. 

(Foto: Acervo pessoal)

A demora para compreender a dimensão dos acontecimentos foi apenas um dos aspectos da experiência da atriz na pandemia. Por conta da impossibilidade de trabalhar foi preciso fazer mudanças drásticas de rotina. Depois de mais dez anos morando em Salvador, Camila se viu obrigada a voltar para a casa dos pais, em Feira de Santana, para cortar custos. Com o passar dos meses a vontade de negar tudo que estava acontecendo foi dando lugar a tristeza até que a artista decidiu usar o tempo para estudar. “Fui passando por fases. Mas não podia ficar parada. Enquanto artista independente que vive de fazer teste de elenco, que não tem ninguém que me chame pra trabalhar. Tinha que fazer alguma coisa. Então decidi estudar”, conta.

 

Foi justamente em uma sucessão de cursos online que Camila se deparou com aquele que a acabaria levando para seu primeiro contato com o teatro feito pela internet. A atriz se inscreveu para participar de um curso remoto de auto ficção, ministrado pelo ator e diretor carioca Marcelo Várzea. Dalí surgiria sua primeira experiência com o que Castro chama de web teatro. O espetáculo “(In)Confessáveis” reuniu atores de todo Brasil para fazer, em monólogos, confissões que podiam – ou não – ser histórias da vida real. Cabia ao público o palpite do que era verdade ou mentira.

Uma das cenas feitas por Camila em (In)Confessáveis

A abertura de inúmeras possibilidades, uma gama imensa de novidades e a possibilidade de troca com artistas de fora da Bahia foram pontos positivos para a atriz, mas não conseguiram apagar a sensação de vazio deixada pela ausência do palco. “Acho que quem não é artista não entende. Mas ter um espetáculo interrompido da forma que foi, pelos motivos que foram e até hoje não poder voltar, a sensação que eu tenho é de que um braço foi arrancado, uma perna foi arrancada. E eu tenho sonhado muito com o teatro, já sonhei várias vezes. Eu sonho com cheiro, eu sonho com a textura do ar. Eu sinto muita falta”, detalha ela. Apesar de tudo, a atriz resolveu se abrir para o novo e para um caminho, que ela sabia, seria longo e desafiador. “Tem sido um grande laboratório de experimentação. Muito enriquecedor”, avalia.

Na quarentena tem teatro?

 

A vontade de experimentar e, principalmente, de seguir fazendo algo foi o que fez surgir a primeira iniciativa online ligada ao teatro na Bahia. O projeto ‘Na quarentena tem teatro’ tinha uma premissa simples: disponibilizar, por meio do Youtube, durante algumas horas, registros em vídeo de espetáculos encenados antes da pandemia. “Quando a quarentena foi decretada eu estava com duas produções encaminhadas. Ai a pandemia chegou e foi tudo muito rápido. Me perguntava o que era aquilo que estava acontecendo. Recebi um card, de um grupo do Rio, que estava colocando gravações de espetáculos no Youtube, e foi ai que eu pensei que a gente podia fazer também e surgiu o ‘Na quarentena tem teatro’. Logo de cara a gente tinha os nossos espetáculos, e entrou em contato com algumas outras pessoas que talvez quisessem fazer parte de uma programação para aquele final de semana”, relembra a atriz e produtora Fernanda Beltrão, uma das idealizadoras.

Projeto ‘Na quarentena tem teatro’ exibiu registros audiovisuais de espetáculos (Foto: Divulgação)

Além de Fernanda, a equipe do projeto tinha mais sete pessoas, todos atores e atrizes de Salvador impedidos de trabalhar por conta da pandemia. Entre 26 de março e 21 de junho de 2020 foram 146 espetáculos que ultrapassaram os limites geográficos da Bahia. “Muito rapidamente a coisa tomou uma proporção que eu não imaginei e as pessoas começaram a procurar a gente querendo fazer parte da programação. Pessoas de Salvador, da Bahia, de outros estados, espetáculos de Portugal. Naquele momento, a ideia foi de fazer com que as pessoas não se esquecessem da gente, porque é teatro, uma arte que acontece na presença. Se as pessoas não vissem a gente online como as pessoas se lembrariam?”, questiona a atriz.

 

A rapidez com que o projeto tomou forma trouxe consigo algumas limitações. No ar apenas alguns dias depois do anúncio das medidas de restrição, o ‘Na quarentena tem teatro‘ precisou usar vídeos de uma realidade pré pandemia, que não haviam sido pensados para exibição e muitas vezes não tinham qualquer tratamento ou edição. “A grande maioria dos espetáculos eram espetáculos gravados para mandar para festival e geralmente é uma exigência de que sejam gravações com câmera parada”, explica a idealizadora. Mesmo com a limitação, o projeto alcançou em três meses de duração mais de 60 mil espectadores, segundo levantamento feito pelo próprio grupo. “Foi muito surpreendente a repercussão. As pessoas se interessavam, se juntavam para assistir, mandavam fotos, postavam. O Instagram acabou crescendo muito rápido”, diz Beltrão.

Trecho do espetáculo ‘Dois pesos e duas medidas’, com a atriz Fernanda Beltrão. Peça foi uma das primeira a ser exibida no projeto ‘Na quarentena tem teatro’

A decisão de encerrar a iniciativa foi, para os artistas, tão natural quanto o começo. “A gente percebeu que a procura estava menor, e também já estávamos cansados. Acho que tivemos a sacada de começar logo, que veio realmente da necessidade de resistir, de existir”, avalia a atriz. Outro dos idealizadores do projeto, o ator e diretor João Guisande vai além. “A coisa na internet evolui muito rápido. Os teatros começaram a se equipar para funcionar como estúdio, começam a surgir essas misturas de cinema com teatro. Todos nós entramos nesse jogo de tentar criar para esse universo”, conta sobre o fim do ‘Na quarentena’.

 

Acostumados a trabalhar juntos, parte do grupo seguiu para experimentar as possibilidades que o teatro feito pela internet trazia. Questionado sobre os limites que poderiam dividir teatro e audiovisual nessa nova forma de fazer, Guisande é taxativo. “Sinceramente, responder isso é muito chato, pouco interessa essa resposta, porque nós precisamos criar, esse é o espaço que nós temos nesse momento, esse palco virtual, a gente precisa aprender a ocupa-lo, entender ele cada vez mais”, diz o artista. “Acho que é uma questão de linguagem, o teatro já mistura linguagens, isso já faz parte do teatro há 400 anos. A internet, o virtual, é mais uma linguagem, continua sendo teatro. Por mais que a gente quisesse estar no palco, com o público, olhando olho no olho, essa é a maneira que nós temos agora”, defende.

 

Pela internet

 

A pergunta sobre o teatro online ser teatro ou audiovisual está longe de atingir um consenso entre os artistas e é uma polêmica que esta reportagem visitou mais detalhadamente no capítulo Intervalo. O que não gera discussão é a informação de que teatro e tecnologia já são velhos conhecidos. Os registros das experiências mundo à fora são diversos. Desde um espetáculo onde uma única atriz no palco tem como colega de elenco a Siri, assistente virtual da Apple, até uma engenhoca criada para que o ator em cena leve choques a medida em que o som da risada da plateia é percebido. Tudo isso aconteceu muitos anos antes de se imaginar que uma pandemia obrigaria o teatro a ser levado para internet.

Em ‘Siri’, atriz canadense contracena com assistente virtual da Apple (Foto: Divulgação/Julie Artacho)

A presença da tecnologia, no entanto, não precisa estar necessariamente ligada a uma ideia inovadora e a espetáculos experimentais como eram os citados ‘Siri’ de 2017 com a atriz canadense Laurence Dauphinais e “Regurgitofagia”, de 2005 com o carioca Michel Melamed. Quem estuda essa relação enxerga a tecnologia muito além dos experimentos cênicos.

 

O encenador e gestor do Teatro Vila Velha, Márcio Meirelles inclui a tecnologia no seu trabalho há 40 anos e lembra que coisa que hoje são quase indispensáveis a um espetáculo um dia já foram grandes inovações. “É como quando criaram, a partir de uma evolução arquitetônica e tecnológica, o palco italiano, a caixa mágica, cheia de rudimento, de coisas que sobem, que descem, que levantam, que abaixam, isso tudo foi aperfeiçoado muito pela tecnologia. Quando entrou luz, a energia elétrica e a iluminação. Tem um tempo de fascinação, e depois passa a ser normal. Hoje em dia tem que ter uma iluminação, mesmo que seja chapada branca, sem efeito. É assim como a sonorização mecânica, a amplificação da voz, a amplificação do ator, através das máscaras da tragédia e o figurino. São tecnologias que a gente vai incorporando”, ensina.

 

Nos espetáculos dirigidos por Meirelles, a tecnologia já é figura fácil muitos anos antes do isolamento. A primeira experiência foi ainda em 1981, onde usar um vídeo durante o espetáculo para simular que os personagens assistiam a um telejornal era um desafio imenso. “Era uma coisa complicada, uma câmera de vídeo era pesada, eu fiz porque tinha parceria para os equipamentos. Tinham duas ou três cenas que eram gravadas, editadas e passavam na televisão”, relembra. De lá pra cá os mais diferentes usos e até o clássico Hamlet, de Shakespeare teve seu encontro com a tecnologia. “Tem um bilhete que Hamlet manda pra Ofélia e o pai dela intercepta e mostra para rainha e depois uma carta que ele manda. Essas duas correspondências, eram por celular, ele falava pelo celular e a gente projetava”, recorda sobre a montagem que assinou em 2018. “Não é uma coisa que surgiu agora. Agora, massificou, é a única alternativa, não tem outra, ou a gente faz esse teatro pela internet, ou não faz”, conclui.

Márcio Meirelles fala sobre o uso da tecnologia no teatro mesmo antes da pandemia; confira esse e outros depoimentos em nossa Plateia de Impressões

Quem também já leva a tecnologia para o palco muito antes da pandemia é o diretor de teatro Marcus Lobo. Formado pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) o artista já pesquisa relação entre a tecnologia e o teatro desde a graduação. “Esses atravessamentos de linguagens estão cada vez mais sem fronteira. Você vai pro teatro e tem ali muito forte a presença do cinema. Essa rasura está muito sem marcas”, acredita Lobo, que tem como objetivo de mestrado justamente investigar a linguagem hibrida nascida da presença da tecnologia no teatro. Marcos é um dos fundadores do coletivo Coato que tem como marca, desde 2013, a dedicação ao estudo da arte com mediação tecnológica dentro do teatro.

 

Dentre as experiências do grupo está uma vivência que se tornaria, anos depois, a única forma de seguir criando, não só para o Coato, mas para todo e qualquer artista: a presença remota. “A gente dividiu o grupo em duas partes, a metade foi para São Paulo. Ficamos morando lá durante três meses em intercâmbio com outro grupo. Então, toda a criação do espetáculo era feita através de reuniões, de vídeo chamada, através de trocas de mensagem e envio de arquivos. A gente já estava experimentando esse processo de criação remota. Toda parte sonora e textual foi produzida em Salvador e enviada para quem estava em São Paulo. A gente ia trocando os materiais para um grupo se afetar pelo que o outro estava produzindo e a partir daí a gente criar a obra”, conta o artista sobre o espetáculo Eu é outro – ensaio sobre fronteiras que estreou em 2017.

 

Para o pesquisador é preciso experimentar na hora de unir teatro e tecnologia. “Certamente a experiência que a gente viveu foi fundamental pra ter um pouco de tranquilidade nesse momento de agora. Porque a gente, realmente já tinha vivenciado isso. Trabalhar com tecnologia é praticar, é exercitar, é experimentar, pra gente entender quais são as possibilidades. E se a gente não tem essa possibilidade de experimentação, a gente, certamente, vai ter dificuldade quando a gente chegar numa situação como essa que a gente chegou agora”, defende. Olhando para o futuro, Márcio Meirelles faz coro com o colega diretor. “Não estou pensando em quando voltar, como vai ser. Não sei. No momento está sendo importantíssimo a gente poder se comunicar com todo mundo, colocar o teatro em rede, abrir a discussão sobre tudo isso. O momento é esse, é hoje, o futuro é agora. Não é quando isso passar, porque enquanto isso não passa a gente tem que fazer as coisas”. Para eles o terceiro sinal precisa tocar. Agora pela internet.

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Pandemia do coronavírus interrompe temporadas de espetáculos e impede artistas do teatro baiano de trabalhar

Terceiro sinal. O burburinho de uma plateia cheia viaja por entre as cortinas até os ouvidos de quem está prestes a entrar no palco. Na coxia, além dos colegas de elenco uma única companhia: o frio na barriga que jamais abandona quem faz teatro. Uma rotina como essa é o desejo de qualquer artista, e era o que vivia, de novo, a atriz baiana Camila Castro.  A estreia da nova temporada de A “Última Virgem havia chegado. O espetáculo, dirigido por Celso Jr e adaptado do texto ‘Os sete gatinhos’ de Nelson Rodrigues, voltava a cartaz nos palcos do Teatro Gregório de Matos, em Salvador, para uma temporada prevista de três semanas, entre os dias 12 e 29 de março de 2020. No entanto, foram apenas quatro apresentações e uma temporada interrompida pela chegada da pandemia do coronavírus.”

Espetáculo ‘A Última Virgem’ teve temporada interrompida pela pandemia do coronavírus (Foto: Divulgação)

“Dia 15 (de março) foi o último dia de apresentação, foi a primeira semana de espetáculo e a gente já sabia, sentia pelo clima das coisas, que algo grande estava por vir, mas ainda nos últimos dois dias a gente higienizou o espaço, passava álcool em tudo. No dia quinze, fizemos uma apresentação. No dia dezesseis, tudo fechou”, lembra Camila. Foi em 16 de março que Salvador anunciou suas primeiras medidas restritivas com a suspensão de aulas presenciais e fechamento de cinemas e teatros, dentre outras determinações. Dois dias depois, os teatros da capital – e da maioria dos municípios baianos que seguiram as mesmas medidas de Salvador – foram fechados se tornando, com o passar dos meses, o único tipo de serviço que não teve episódios de abertura parcial ao longo da pandemia.

 

Naquele primeiro momento a sensação de suspensão e os figurinos e cenários guardados no teatro à espera da hora em que seria possível subir no palco de novo. “Eu estava bem iludida, como a maioria das pessoas, achando que começou em março e em julho já estaria tudo bem. Pensei que em maio, junho a gente voltava com o espetáculo. Estava acreditando nisso”, relembra a atriz.

 

Foi só em abril, um mês depois do fechamento, e com a chegada do período de chuvas em Salvador que a ficha começou a cair para Camila. A atriz acumulava em ‘A Última Virgem’ a função de produtora, e recebeu um telefonema da administração do Gregório de Matos com o pedido para retirar do teatro o cenário e todo material da peça, justamente por conta de problemas com a chuva. “Me vi naquele teatro vazio. Nosso cenário é bem pouco. São panos e seis cadeiras. Eu cheguei e as seis cadeiras estavam lá no meio do palco, aquele teatro vazio e eu tendo que levar as coisas todas sozinha. Foi bem estranho. Nesse momento eu entendi que não ia voltar tão cedo. Aí, eu entendi que ia demorar bastante”. 

(Foto: Acervo pessoal)

A demora para compreender a dimensão dos acontecimentos foi apenas um dos aspectos da experiência da atriz na pandemia. Por conta da impossibilidade de trabalhar foi preciso fazer mudanças drásticas de rotina. Depois de mais dez anos morando em Salvador, Camila se viu obrigada a voltar para a casa dos pais, em Feira de Santana, para cortar custos. Com o passar dos meses a vontade de negar tudo que estava acontecendo foi dando lugar a tristeza até que a artista decidiu usar o tempo para estudar. “Fui passando por fases. Mas não podia ficar parada. Enquanto artista independente que vive de fazer teste de elenco, que não tem ninguém que me chame pra trabalhar. Tinha que fazer alguma coisa. Então decidi estudar”, conta.

 

Foi justamente em uma sucessão de cursos online que Camila se deparou com aquele que a acabaria levando para seu primeiro contato com o teatro feito pela internet. A atriz se inscreveu para participar de um curso remoto de auto ficção, ministrado pelo ator e diretor carioca Marcelo Várzea. Dalí surgiria sua primeira experiência com o que Castro chama de web teatro. O espetáculo “(In)Confessáveis” reuniu atores de todo Brasil para fazer, em monólogos, confissões que podiam – ou não – ser histórias da vida real. Cabia ao público o palpite do que era verdade ou mentira.

Uma das cenas feitas por Camila em (In)Confessáveis

A abertura de inúmeras possibilidades, uma gama imensa de novidades e a possibilidade de troca com artistas de fora da Bahia foram pontos positivos para a atriz, mas não conseguiram apagar a sensação de vazio deixada pela ausência do palco. “Acho que quem não é artista não entende. Mas ter um espetáculo interrompido da forma que foi, pelos motivos que foram e até hoje não poder voltar, a sensação que eu tenho é de que um braço foi arrancado, uma perna foi arrancada. E eu tenho sonhado muito com o teatro, já sonhei várias vezes. Eu sonho com cheiro, eu sonho com a textura do ar. Eu sinto muita falta”, detalha ela. Apesar de tudo, a atriz resolveu se abrir para o novo e para um caminho, que ela sabia, seria longo e desafiador. “Tem sido um grande laboratório de experimentação. Muito enriquecedor”, avalia.

Na quarentena tem teatro?

 

A vontade de experimentar e, principalmente, de seguir fazendo algo foi o que fez surgir a primeira iniciativa online ligada ao teatro na Bahia. O projeto ‘Na quarentena tem teatro’ tinha uma premissa simples: disponibilizar, por meio do Youtube, durante algumas horas, registros em vídeo de espetáculos encenados antes da pandemia. “Quando a quarentena foi decretada eu estava com duas produções encaminhadas. Ai a pandemia chegou e foi tudo muito rápido. Me perguntava o que era aquilo que estava acontecendo. Recebi um card, de um grupo do Rio, que estava colocando gravações de espetáculos no Youtube, e foi ai que eu pensei que a gente podia fazer também e surgiu o ‘Na quarentena tem teatro’. Logo de cara a gente tinha os nossos espetáculos, e entrou em contato com algumas outras pessoas que talvez quisessem fazer parte de uma programação para aquele final de semana”, relembra a atriz e produtora ‘Na quarentena tem teatro’, uma das idealizadoras.

Projeto ‘Na quarentena tem teatro’ exibiu registros audiovisuais de espetáculos (Foto: Divulgação)

Além de Fernanda, a equipe do projeto tinha mais sete pessoas, todos atores e atrizes de Salvador impedidos de trabalhar por conta da pandemia. Entre 26 de março e 21 de junho de 2020 foram 146 espetáculos que ultrapassaram os limites geográficos da Bahia. “Muito rapidamente a coisa tomou uma proporção que eu não imaginei e as pessoas começaram a procurar a gente querendo fazer parte da programação. Pessoas de Salvador, da Bahia, de outros estados, espetáculos de Portugal. Naquele momento, a ideia foi de fazer com que as pessoas não se esquecessem da gente, porque é teatro, uma arte que acontece na presença. Se as pessoas não vissem a gente online como as pessoas se lembrariam?”, questiona a atriz.

 

A rapidez com que o projeto tomou forma trouxe consigo algumas limitações. No ar apenas alguns dias depois do anúncio das medidas de restrição, o ‘Na quarentena tem teatro precisou usar vídeos de uma realidade pré pandemia, que não haviam sido pensados para exibição e muitas vezes não tinham qualquer tratamento ou edição. “A grande maioria dos espetáculos eram espetáculos gravados para mandar para festival e geralmente é uma exigência de que sejam gravações com câmera parada”, explica a idealizadora. Mesmo com a limitação, o projeto alcançou em três meses de duração mais de 60 mil espectadores, segundo levantamento feito pelo próprio grupo. “Foi muito surpreendente a repercussão. As pessoas se interessavam, se juntavam para assistir, mandavam fotos, postavam. O Instagram acabou crescendo muito rápido”, diz Beltrão.

Trecho do espetáculo ‘Dois pesos e duas medidas’, com a atriz Fernanda Beltrão. Peça foi uma das primeira a ser exibida no projeto ‘Na quarentena tem teatro’

A decisão de encerrar a iniciativa foi, para os artistas, tão natural quanto o começo. “A gente percebeu que a procura estava menor, e também já estávamos cansados. Acho que tivemos a sacada de começar logo, que veio realmente da necessidade de resistir, de existir”, avalia a atriz. Outro dos idealizadores do projeto, o ator e diretor João Guisande vai além. “A coisa na internet evolui muito rápido. Os teatros começaram a se equipar para funcionar como estúdio, começam a surgir essas misturas de cinema com teatro. Todos nós entramos nesse jogo de tentar criar para esse universo”, conta sobre o fim do ‘Na quarentena’.

Acostumados a trabalhar juntos, parte do grupo seguiu para experimentar as possibilidades que o teatro feito pela internet trazia. Questionado sobre os limites que poderiam dividir teatro e audiovisual nessa nova forma de fazer, Guisande é taxativo. “Sinceramente, responder isso é muito chato, pouco interessa essa resposta, porque nós precisamos criar, esse é o espaço que nós temos nesse momento, esse palco virtual, a gente precisa aprender a ocupa-lo, entender ele cada vez mais”, diz o artista. “Acho que é uma questão de linguagem, o teatro já mistura linguagens, isso já faz parte do teatro há 400 anos. A internet, o virtual, é mais uma linguagem, continua sendo teatro. Por mais que a gente quisesse estar no palco, com o público, olhando olho no olho, essa é a maneira que nós temos agora”, defende.

 

Pela internet

 

A pergunta sobre o teatro online ser teatro ou audiovisual está longe de atingir um consenso entre os artistas e é uma polêmica que esta reportagem vai visitar mais a frente. O que não gera discussão é a informação de que teatro e tecnologia já são velhos conhecidos. Os registros das experiências mundo à fora são diversos. Desde um espetáculo onde uma única atriz no palco tem como colega de elenco a Siri, assistente virtual da Apple, até uma engenhoca criada para que o ator em cena leve choques a medida em que o som da risada da plateia é percebido. Tudo isso aconteceu muitos anos antes de se imaginar que uma pandemia obrigaria o teatro a ser levado para internet.

Em ‘Siri’, atriz canadense contracena com assistente virtual da Apple (Foto: Divulgação/Julie Artacho)

A presença da tecnologia, no entanto, não precisa estar necessariamente ligada a uma ideia inovadora e a espetáculos experimentais como eram os citados ‘Siri’ de 2017 com a atriz canadense Laurence Dauphinais e “Regurgitofagia”, de 2005 com o carioca Michel Melamed. Quem estuda essa relação enxerga a tecnologia muito além dos experimentos cênicos.

 

O encenador e gestor do Teatro Vila Velha, Márcio Meirelles inclui a tecnologia no seu trabalho há 40 anos e lembra que coisa que hoje são quase indispensáveis a um espetáculo um dia já foram grandes inovações. “É como quando criaram, a partir de uma evolução arquitetônica e tecnológica, o palco italiano, a caixa mágica, cheia de rudimento, de coisas que sobem, que descem, que levantam, que abaixam, isso tudo foi aperfeiçoado muito pela tecnologia. Quando entrou luz, a energia elétrica e a iluminação. Tem um tempo de fascinação, e depois passa a ser normal. Hoje em dia tem que ter uma iluminação, mesmo que seja chapada branca, sem efeito. É assim como a sonorização mecânica, a amplificação da voz, a amplificação do ator, através das máscaras da tragédia e o figurino. São tecnologias que a gente vai incorporando”, ensina.

 

Nos espetáculos dirigidos por Meirelles, a tecnologia já é figura fácil muitos anos antes do isolamento. A primeira experiência foi ainda em 1981, onde usar um vídeo durante o espetáculo para simular que os personagens assistiam a um telejornal era um desafio imenso. “Era uma coisa complicada, uma câmera de vídeo era pesada, eu fiz porque tinha parceria para os equipamentos. Tinham duas ou três cenas que eram gravadas, editadas e passavam na televisão”, relembra. De lá pra cá os mais diferentes usos e até o clássico Hamlet, de Shakespeare teve seu encontro com a tecnologia. “Tem um bilhete que Hamlet manda pra Ofélia e o pai dela intercepta e mostra para rainha e depois uma carta que ele manda. Essas duas correspondências, eram por celular, ele falava pelo celular e a gente projetava”, recorda sobre a montagem que assinou em 2018. “Não é uma coisa que surgiu agora. Agora, massificou, é a única alternativa, não tem outra, ou a gente faz esse teatro pela internet, ou não faz”, conclui.

Márcio Meirelles fala sobre o uso da tecnologia no teatro mesmo antes da pandemia; confira esse e outros depoimentos em nossa Plateia de Impressões

Quem também já leva a tecnologia para o palco muito antes da pandemia é o diretor de teatro Marcus Lobo. Formado pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) o artista já pesquisa relação entre a tecnologia e o teatro desde a graduação. “Esses atravessamentos de linguagens estão cada vez mais sem fronteira. Você vai pro teatro e tem ali muito forte a presença do cinema. Essa rasura está muito sem marcas”, acredita Lobo, que tem como objetivo de mestrado justamente investigar a linguagem hibrida nascida da presença da tecnologia no teatro. Marcos é um dos fundadores do coletivo Coato que tem como marca, desde 2013, a dedicação ao estudo da arte com mediação tecnológica dentro do teatro.

 

Dentre as experiências do grupo está uma vivência que se tornaria, anos depois, a única forma de seguir criando, não só para o Coato, mas para todo e qualquer artista: a presença remota. “A gente dividiu o grupo em duas partes, a metade foi para São Paulo. Ficamos morando lá durante três meses em intercâmbio com outro grupo. Então, toda a criação do espetáculo era feita através de reuniões, de vídeo chamada, através de trocas de mensagem e envio de arquivos. A gente já estava experimentando esse processo de criação remota. Toda parte sonora e textual foi produzida em Salvador e enviada para quem estava em São Paulo. A gente ia trocando os materiais para um grupo se afetar pelo que o outro estava produzindo e a partir daí a gente criar a obra”, conta o artista sobre o espetáculo Eu é outro – ensaio sobre fronteiras que estreou em 2017.

 

Para o pesquisador é preciso experimentar na hora de unir teatro e tecnologia. “Certamente a experiência que a gente viveu foi fundamental pra ter um pouco de tranquilidade nesse momento de agora. Porque a gente, realmente já tinha vivenciado isso. Trabalhar com tecnologia é praticar, é exercitar, é experimentar, pra gente entender quais são as possibilidades. E se a gente não tem essa possibilidade de experimentação, a gente, certamente, vai ter dificuldade quando a gente chegar numa situação como essa que a gente chegou agora”, defende. Olhando para o futuro, Márcio Meirelles faz coro com o colega diretor. “Não estou pensando em quando voltar, como vai ser. Não sei. No momento está sendo importantíssimo a gente poder se comunicar com todo mundo, colocar o teatro em rede, abrir a discussão sobre tudo isso. O momento é esse, é hoje, o futuro é agora. Não é quando isso passar, porque enquanto isso não passa a gente tem que fazer as coisas”. Para eles o terceiro sinal precisa tocar. Agora pela internet.

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