Com teatros fechados, pausa forçada coloca artistas do teatro baiano a refletir sobre o que é o teatro feito pela internet e quais são as formas possíveis para seguir criando.

São mais de 30 anos nos palcos. Um caminho marcado pelos mais diversos tipos de papéis e o reconhecimento conquistado através de indicações e vitórias em premiações. A estreia de ‘A última noite’ seria mais um passo na carreira da atriz baiana Vivianne Laert. Há quinze dias da abertura das cortinas, no entanto, a pandemia do novo coronavírus impôs um capítulo diferente e inesperado. Pela primeira vez desde o começo, a atriz foi obrigada a parar, e a pausa durou mais de um ano. “Foi um baque em todos os níveis da vida, um momento de muita reclusão que não é muito comum para mim. Foi muito forte, uma tristeza grande e uma esperança de que a gente voltasse logo. Demorei um tempo, fiquei um tempo reclusa, até um pouco resistente em voltar e em admitir que era preciso sobreviver literalmente de uma outra maneira”, conta Vica, como é conhecida entre os amigos da arte, sobre o período sem o teatro.

 

Se a chegada da pandemia levou atores e atrizes a logo experimentarem as possibilidades da internet, para Vica o encontro com o online demorou. Primeiro, as tentativas frustradas de manter aquecido o processo de ensaios de ‘A última noite’ acabaram levando o espetáculo para a gaveta. “É um espetáculo só com um homem e uma mulher em cena, com muito toque, muito próximo em todos os sentidos. Um texto muito íntimo, então era impossível fazer nesse momento”, explica, sobre as razões que impediram a adaptação do espetáculo para a nova realidade online. “Acho que a gente guardou ‘A última noite’ em um lugar meio sagrado, porque a gente não conseguiu nem voltar a ler. Tenho certeza de que vai ser meu projeto de reestreia quando a pandemia acabar e a gente puder fazer presencialmente”, completa a artista.

 

No virtual, a chegada de novas possibilidades de projetos não trouxe a atriz de volta facilmente. Primeiro, Vica dividiria a cena online com Isadora Werneck e Zeca de Abreu  em um projeto que foi cancelado por seu idealizador. As atrizes chegaram a pensar em se manter juntas e criar um texto que falasse, justamente, sobre mulheres e pandemia, mas a dificuldade de conciliar a agenda de compromissos das três acabou fazendo a ideia subir no telhado. Meses depois veio o convite do amigo e diretor Gordo Neto, para integrar o elenco do espetáculo infantil ‘Alfaceto’. Vica chegou a participar de ensaios online, mas quis o destino que ela precisasse novamente sair de cena. Com o afrouxamento das medidas de restrição, a equipe resolveu fazer alguns encontros presenciais, o que levou a atriz a precisar desistir do projeto. “Na mesma época meu neto Pedro nasceu e a perspectiva mudou muito. Eu só poderia vê-lo se ficasse realmente isolada. Abri mão, fiz essa opção, uma decisão muito difícil, mas que não foi nenhum sacrifício. Eu sabia que era o que eu precisava e o que eu queria fazer. Talvez esse seja o único papel mais importante na minha vida que o de atriz, o de mãe, e agora de avó”, relata.

Trecho da leitura do espetáculo ‘Eu, Zuzu Angel, agora milito, realizada virtualmente em julho de 2021 e protagonizada pela atriz Vivianne Laert

Foi apenas em 5 de junho de 2021, mais de um ano depois do início da pandemia, que Vivianne Laert subiu aos palcos virtuais. A data marcava o centenário de nascimento da estilista Zuzu Angel e o elenco do espetáculo Eu, Zuzu Angel, agora milito”, resolveu se reunir para uma leitura dramática online do texto, que havia sido encenado em 2017, com Vica no papel principal. Novamente veio a rotina de encontros virtuais para os ensaios e, dessa vez, a estreia. Dias antes, uma transmissão teste do espetáculo pelo Youtube trouxe para a atriz uma sensação diferente. “Eu tomei um susto tão grande. Sinceramente, me detestei em cena. Mais até por uma questão de dificuldade técnica. Essa coisa da proximidade com a câmera, dessa utilização, que todos nós estamos aprendendo ainda. São descobertas que estão em processo”, avalia a atriz veterana.

Vivianne Laert fala sobre as transformações do teatro na pandemia; confira esse e outros depoimentos em nossa Plateia de Impressões

Luz, câmera, ação

 

A dificuldade na relação com a tecnologia e com as ferramentas do audiovisual que a pandemia impôs ao teatro é um dos desafios mais citados pelos artistas que resolveram se aventurar para seguir criando. A atriz Laura Sarpa, por exemplo, passou por diversas etapas no processo de adaptar seu espetáculo ‘Ave de areia’ para o formato online. A primeira delas foi, também, a pausa, motivada justamente por uma relação distante com as redes sociais. “Essa versão online exige muito da pessoa que tem menos afinidade com essa exposição. Eu realmente tenho essa dificuldade dessa exposição, a exposição no palco é uma coisa, eu sei lidar, a exposição via internet é outra, completamente diferente. É uma coisa que eu não estava acostumada”, conta.

 

Com a chegada da Lei Aldir Blanc, principal instrumento responsável pelo financiamento aos artistas durante a pandemia, Laura viu seu projeto de adaptação ser aprovado e a pausa precisou dar lugar novamente para a criação, desta vez virtual. “Imaginava até que eu ia fazer ao vivo, ligar a câmera de celular e apresentar aqui ao vivo. No máximo, imaginei dois celulares. Quando o projeto passou, eu percebi que podia ir mais além, botar uma coisa mais audiovisual e assumir isso. O devaneio começou a ir por aí, uma onda mais cinematográfica. Não vamos sair do teatro, mas vamos trazer essa mistura”, relata a atriz.

 

Para Laura, o principal desafio não estava em operar os equipamentos, mas em entender as possibilidades que a junção do tempo, dos recursos financeiros e dos equipamentos disponíveis poderiam trazer para o projeto. “Às vezes uma pessoa faz um espetáculo com o celular, com a tecnologia mais simples, e faz mito melhor do que a pessoa que usou o mais top da tecnologia. Por que isso? Porque essa pessoa tá muito bem alinhada com o que ela pode fazer e o que ela tem em mãos e o trabalho dela nessa linguagem”, acredita a atriz, que colocou em prática na adaptação do seu projeto justamente esse entendimento.

 

Trecho do espetáculo ‘Ave de areia’ que em sua versão virtual usou recursos próprios do audiovisual

Em ‘Ave de areia’, a ideia inicial era deslocar o espetáculo para ser encenado – e gravado – em um museu. Foi justamente a preocupação com os equipamentos, a falta de estrutura cênica de um espaço como esse além do custo para equipá-lo que fez a equipe do espetáculo mudar de ideia e voltar ao teatro. A peça foi então filmada no Teatro Módulo, mas não perdeu a vontade de inovar. O espetáculo lançou mão de recursos audiovisuais como movimentação de câmera e a inserção de imagens pré-gravadas por meio de edição para explorar o máximo potencial possível. “A gente tá entendendo ainda, os vários formatos que o teatro online propõe. Não é uma coisa única, são inúmeros tipos de teatro online diferentes. Tem o teatro multitela, com tela verde, ao vivo, pré-gravado, tem o teatro que virou cinema, mas existe uma coisa que une isso pra continuar sendo teatro, tem a raiz nessa arte de palco. As pessoas estão quebrando a cabeça pra se conectar com o seu espectador, simplesmente por pensarem: estou fazendo teatro no vídeo”, defende Laura.

 

Mas é teatro?

A defesa de Laura dá início à discussão que talvez seja a mais presente nas conversas dos artistas de teatro desde que a pandemia os conduziu a criar na internet. Isso que se faz no isolamento é ou não teatro? Onde estão os limites que separam o que fazem os artistas do palco daquilo que é feito pelos profissionais do audiovisual, do cinema? Gestora do
Teatro Módulo, onde o espetáculo de Laura foi gravado, Vadinha Moura é sincera em dizer que não tem respostas. “Se ele é teatro ou audiovisual eu não sei. Do meu ponto de vista de gestora, que estou lá, assistindo aquilo acontecer como acontece no teatro, ao vivo, a gente sente as mesmas emoções de estar assistindo o artista fazendo. Quando você vira o olhar, vê a câmera, todos os equipamentos, vê aquilo sendo transformado. A gente que tá dentro do teatro vê as duas possibilidades, o artista no palco e toda a tecnologia fazendo a transmissão. É algo que é novo, e a gente não pode perder as possibilidades do novo”, acredita Vadinha.

 

Se para muitos artistas os limites estão confusos e as perguntas sem respostas, existem aqueles que são categóricos em defender sua posição. A atriz Aicha Marques, por exemplo, acredita que o teatro ainda espera a pandemia passar para voltar a ser feito plenamente. “Existe uma linha que é nítida, abissal inquestionável. Teatro é o teatro, audiovisual é audiovisual, pelo que existe entre a obra e quem assiste. Entre a obra e quem assiste no teatro só existe o ar, porque você está em contato direto com a obra. É a arte da presença. Não se pode substituir a presença, não se pode traduzir essa percepção real, física, da presença no vídeo. É impossível. Pra mim, não tem nem o que questionar, é completamente diferente”, acredita a artista.

 

Apesar de enxergar uma clara diferença, a atriz teve no isolamento um período de produções intensas. Criou dois personagens para esquetes em suas redes sociais, escreveu e atuou em uma web série, fez um curta e a versão virtual de um espetáculo idealizado antes da pandemia. Para Aícha existem pontos que levam a confusão e ao surgimento natural da dúvida sobre se o que tem sido produzido é ou não teatro.  A artista elenca o próprio trabalho de interpretação do ator e a possibilidade de se adaptar e transpor personagens e textos do teatro para a tela como aspectos que acabam contribuindo para a sensação de que se está fazendo teatro. “Pelo vídeo, eu não posso sentir o cheiro, eu não consigo ver tridimensionalmente. Tem atores claramente geniais, em teatro que não conseguem lidar com esse audiovisual”, avalia a atriz.

 

Atriz Aicha Marques passou a produzir conteúdo para as redes sociais durante a pandemia (Reprodução/Instagram)

Por  outro lado, o ator e dramaturgo Miguel Campelo defende que, mesmo pela internet, o teatro não deixa de ser teatro. Para o artista, que antes do isolamento desenvolvia um trabalho com teatro de rua e que também tem uma personagem drag queen, trata-se simplesmente de adaptação de uma mesma linguagem. “Acho que o teatro se diferencia pela natureza dos seus projetos, não é uma questão estética, e não é somente com a presença do espectador fisicamente diante de você que torna algo teatro. Através da história o teatro já esteve nas mais diversas plataformas. Na rua, nos palcos, nos anfiteatros, nos palcos italianos, nas estalagens, dentro dos palácios, nos bordeis. Fez-se teatro em todo tipo de lugar. Por que não se pode fazer na internet? A maneira como o teatro aborda as coisas é sempre diferente”, defende o artista.

 

Para Miguel, a relação teatro e internet é um espaço de transformação não só para a forma de se fazer teatro, mas principalmente para o modo de se estar na web. “A internet tem muita produção de conteúdo artístico audiovisual, de qualidades diversas, do entretenimento mais ligeiro, até produtos de profundidade, mas o teatro tem um procedimento ético na construção e na maneira de contar suas histórias, na sua relação com a vida pública, através de séculos, compreendendo a importância dessa linguagem artística pro desenvolvimento da sociedade. Nosso compromisso é sempre com o desenvolvimento social e humano. Então isso é um diferencial para muito além das questões estéticas”, acredita.

Reproduzir vídeo

Depois de passar pela pausa e enfim experimentar a forma online do teatro, Vivianne Laert resume o que, para ela, é o mais importante diante da polêmica. “Não sei se me encaixo nessa nova forma, não sei o que é isso e se é isso que eu quero, mas é o que temos para hoje. Então vamos fazer da melhor forma possível, ter o cuidado que a gente sempre teve na cena e poder fazer isso de uma forma que chegue até as pessoas, que comunique, que toque, que instigue. É isso que a gente quer com a nossa arte”, avalia a atriz. Vadinha Moura faz coro. “O mais louco de tudo foi ficar sem o teatro funcionar. É uma sensação bem dolorosa. Foi um ano difícil e eu tinha o medo de não saber quando a gente volta. Até hoje a gente tem essa pergunta que não quer calar. Precisei fazer alguma coisa para que aquele espaço pudesse ter vida”, diz sobre a necessidade de seguir criando e sobre os obstáculos que enfrentou por ser gestora de um dos principais teatros de Salvador.


Nas câmeras, o desafio

 

Se engana quem pensa que, para os artistas, o desafio maior está em responder em definitivo as perguntas que rondam o conceito do teatro feito na internet. Antes mesmo de começar a criar – e a entender a linguagem – é preciso lidar com outro desafio: os custos altos dos equipamentos de um lado e a falta de recursos causada, justamente, pela pausa e pela impossibilidade de trabalhar presencialmente do outro. Até os próprios teatros, que sobrevivem de oferecer estrutura para os espetáculos precisaram ultrapassar barreiras por conta dos altos custos da nova aparelhagem necessária. No caso do Teatro Módulo, foi preciso contar com parcerias. “Eu precisava pensar no teatro como um equipamento ativo. Meu medo era realmente não ter nada e fechar as portas, acabar. As pessoas precisavam saber que o Teatro existe, que o Módulo está de pé, que estamos aqui vivos, com esperança”, lembra a gestora, sobre os momentos iniciais da pandemia.


Para o espaço, foi preciso uma parceria com a M2 Soluções Audiovisuais, empresa que forneceu todos os equipamentos necessários para que as peças fossem filmadas em mais de um ângulo e transmitidas ao vivo do palco para a casa do público através de vídeo conferência. “Como nós não tínhamos e não podíamos comprar por serem equipamentos muito caros veio a parceria para essa parte. Assim a gente conseguiu fazer alguns espetáculos, eventos corporativos, porque precisávamos sobreviver de alguma forma. Não era suficiente para pagar as contas, mas a gente não podia também ficar parado”, conta Vadinha sem deixar de reconhecer as vantagens do teatro. “O teatro já tem uma estrutura de luz, som, uma acústica positiva, já estava pronto de alguma forma”, completa.

Reproduzir vídeo

A vantagem que os teatros tinham para adaptar seus espaços, no entanto, não era realidade para artistas independentes que trabalham sem os recursos necessários para usufruir de uma estrutura profissional. Entre os atores e atrizes os cenários e dificuldades eram os mais diversos. O ator Rafael Bulhões, por exemplo, se viu impedido de realizar a temporada de seu espetáculo Devir Gazela no Rio de Janeiro. Rafael investiu na temporada do espetáculo suas últimas economias esperando repetir em terras cariocas o burburinho que a performance tinha causado em Salvador. Dias antes da estreia veio o cancelamento em razão das medidas restritivas e o ator teve dificuldade até para voltar para casa. “Eu sempre fiz teatro a minha vida toda. E quando deu a pandemia, a única coisa que a gente escutava era que os artistas precisam se reinventar, como se a gente fosse o limão que você espreme e sai suco. E nós somos isso. Quando eu vi que era uma questão de sobrevivência, porque os teatros não iriam voltar tão cedo resolvi comprar um tripé, fiz a loucura e comprei um tripé sem ter dinheiro”, relata. 

O tripé era o equipamento que o artista precisava para transformar a sala de sua casa em estúdio e apresentar seu espetáculo pela internet. A temporada feita online com ingressos a R$ 20 e R$ 10 entre agosto e setembro de 2020 foi suficiente para pagar o investimento no crédito e ajudar o ator no sustento básico por um tempo. “Enchi a caixa de entrada de todos os meus contatos, meus amigos e até desconhecidos com a divulgação. Teve hora que eu esgotei, um final de semana que eu não vendi nenhum ingresso, não consegui mais vender. Acho que todo mundo viu, eu consegui vender pra todo mundo que eu conhecia”, se recorda o artista, orgulhoso de ter conseguido pelo menos por um período algum retorno financeiro com seu espetáculo, mesmo que virtual. “Consegui pagar o custo do tripé e passar um tempo. Comer, me alimentar com o meu trabalho de artista”, diz.

Trecho do espetáculo Devir Gazela, encenado por Rafael Bulhões da sala de sua casa

O mesmo orgulho é dividido com a atriz Evelin Buchegguer, que fala sobre o sustento através da arte e relata que a pandemia foi para ela mais um momento de parada e reflexão. “Sempre consegui trabalhar com teatro. Sempre. Para mim é muito importante poder sobreviver do teatro. Tive momentos de pensar em fazer mestrado para poder ensinar. Chega sempre o momento em que você precisa pensar como fazer para sobreviver da nossa profissão, e muitas vezes a gente acaba tendo que fazer outras coisas fora da área da interpretação e da arte. Eu até hoje estou vivendo, graças a Deus, da arte”, se orgulha.

Atriz Evein Buchegger se tornou ‘Dona Néia’ em trabalho feito durante a pandemia

Diferente de Rafael, a atriz viveu na pandemia um período incomum de certa segurança financeira. Aprovada em um teste em 2019 para ser garota propaganda da empresa Neoenergia, operadora de energia elétrica da Bahia, a atriz realizou o trabalho mesmo durante a pandemia, se tornou a Dona Néia e viu o contrato de dois anos, que se encerra apenas em dezembro de 2021, como um alívio frente a tantas incertezas. “Era para ser um projeto muito maior, com viagens, entrevistas, shows, mas por conta da pandemia aconteceu de uma maneira diferente. Mesmo assim, fecharam o contrato. Entrou a pandemia e eu tinha um contrato fechado, o que não acontecia em minha vida há muito tempo”, revela a artista, sobre o aspecto financeiro do período.

 

Por mais diferentes que sejam as histórias de atores e atrizes baianos e a forma de enfrentar a pausa uma coisa é unânime: a necessidade e o desejo de seguir criando e em contato com a arte. “Foi um momento de coragem. Agarrei na mão do sonho, peguei na mão de tudo que eu tinha construído e segui fazendo”, diz Rafael. “Tenho feito um esforço enorme para não fraquejar. É difícil porque é o meu ar, ser atriz é como eu me expresso, como eu me posiciono, é como se realmente estivesse faltando um pedaço. Tenho muita saudade. Ao mesmo tempo, como cidadã, eu sinto que existe algo maior. Voltar a atuar é tudo para mim. Mas o que é voltar ao normal? A gente não volta mais atrás. É uma nova era para o teatro e para a vida das pessoas”, finaliza Vica. Para os artistas, diante da pausa fica a certeza de seguir criando, como for possível.

 

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Com teatros fechados, pausa forçada coloca artistas do teatro baiano a refletir sobre o que é o teatro feito pela internet e quais são as formas possíveis para seguir criando.

São mais de 30 anos nos palcos. Um caminho marcado pelos mais diversos tipos de papéis e o reconhecimento conquistado através de indicações e vitórias em premiações. A estreia de ‘A última noite’ seria mais um passo na carreira da atriz baiana Vivianne Laert. Há quinze dias da abertura das cortinas, no entanto, a pandemia do novo coronavírus impôs um capítulo diferente e inesperado. Pela primeira vez desde o começo, a atriz foi obrigada a parar, e a pausa durou mais de um ano. “Foi um baque em todos os níveis da vida, um momento de muita reclusão que não é muito comum para mim. Foi muito forte, uma tristeza grande e uma esperança de que a gente voltasse logo. Demorei um tempo, fiquei um tempo reclusa, até um pouco resistente em voltar e em admitir que era preciso sobreviver literalmente de uma outra maneira”, conta Vica, como é conhecida entre os amigos da arte, sobre o período sem o teatro.

 

Se a chegada da pandemia levou atores e atrizes a logo experimentarem as possibilidades da internet, para Vica o encontro com o online demorou. Primeiro, as tentativas frustradas de manter aquecido o processo de ensaios de ‘A última noite’ acabaram levando o espetáculo para a gaveta. “É um espetáculo só com um homem e uma mulher em cena, com muito toque, muito próximo em todos os sentidos. Um texto muito íntimo, então era impossível fazer nesse momento”, explica, sobre as razões que impediram a adaptação do espetáculo para a nova realidade online. “Acho que a gente guardou ‘A última noite’ em um lugar meio sagrado, porque a gente não conseguiu nem voltar a ler. Tenho certeza de que vai ser meu projeto de reestreia quando a pandemia acabar e a gente puder fazer presencialmente”, completa a artista.

 

No virtual, a chegada de novas possibilidades de projetos não trouxe a atriz de volta facilmente. Primeiro, Vica dividiria a cena online com Isadora Werneck e Zeca de Abreu  em um projeto que foi cancelado por seu idealizador. As atrizes chegaram a pensar em se manter juntas e criar um texto que falasse, justamente, sobre mulheres e pandemia, mas a dificuldade de conciliar a agenda de compromissos das três acabou fazendo a ideia subir no telhado. Meses depois veio o convite do amigo e diretor Gordo Neto, para integrar o elenco do espetáculo infantil ‘Alfaceto’. Vica chegou a participar de ensaios online, mas quis o destino que ela precisasse novamente sair de cena. Com o afrouxamento das medidas de restrição, a equipe resolveu fazer alguns encontros presenciais, o que levou a atriz a precisar desistir do projeto. “Na mesma época meu neto Pedro nasceu e a perspectiva mudou muito. Eu só poderia vê-lo se ficasse realmente isolada. Abri mão, fiz essa opção, uma decisão muito difícil, mas que não foi nenhum sacrifício. Eu sabia que era o que eu precisava e o que eu queria fazer. Talvez esse seja o único papel mais importante na minha vida que o de atriz, o de mãe, e agora de avó”, relata.

Trecho da leitura do espetáculo ‘Eu, Zuzu Angel, agora milito, realizada virtualmente em julho de 2021 e protagonizada pela atriz Vivianne Laert

Foi apenas em 5 de junho de 2021, mais de um ano depois do início da pandemia, que Vivianne Laert subiu aos palcos virtuais. A data marcava o centenário de nascimento da estilista Zuzu Angel e o elenco do espetáculo Eu, Zuzu Angel, agora milito”, resolveu se reunir para uma leitura dramática online do texto, que havia sido encenado em 2017, com Vica no papel principal. Novamente veio a rotina de encontros virtuais para os ensaios e, dessa vez, a estreia. Dias antes, uma transmissão teste do espetáculo pelo Youtube trouxe para a atriz uma sensação diferente. “Eu tomei um susto tão grande. Sinceramente, me detestei em cena. Mais até por uma questão de dificuldade técnica. Essa coisa da proximidade com a câmera, dessa utilização, que todos nós estamos aprendendo ainda. São descobertas que estão em processo”, avalia a atriz veterana.

Vivianne Laert fala sobre as transformações do teatro na pandemia; confira esse e outros depoimentos em nossa Plateia de Impressões

Luz, câmera, ação

 

A dificuldade na relação com a tecnologia e com as ferramentas do audiovisual que a pandemia impôs ao teatro é um dos desafios mais citados pelos artistas que resolveram se aventurar para seguir criando. A atriz Laura Sarpa, por exemplo, passou por diversas etapas no processo de adaptar seu espetáculo ‘Ave de areia’ para o formato online. A primeira delas foi, também, a pausa, motivada justamente por uma relação distante com as redes sociais. “Essa versão online exige muito da pessoa que tem menos afinidade com essa exposição. Eu realmente tenho essa dificuldade dessa exposição, a exposição no palco é uma coisa, eu sei lidar, a exposição via internet é outra, completamente diferente. É uma coisa que eu não estava acostumada”, conta.

Com a chegada da Lei Aldir Blanc, principal instrumento responsável pelo financiamento aos artistas durante a pandemia, Laura viu seu projeto de adaptação ser aprovado e a pausa precisou dar lugar novamente para a criação, desta vez virtual. “Imaginava até que eu ia fazer ao vivo, ligar a câmera de celular e apresentar aqui ao vivo. No máximo, imaginei dois celulares. Quando o projeto passou, eu percebi que podia ir mais além, botar uma coisa mais audiovisual e assumir isso. O devaneio começou a ir por aí, uma onda mais cinematográfica. Não vamos sair do teatro, mas vamos trazer essa mistura”, relata a atriz.

 

Para Laura, o principal desafio não estava em operar os equipamentos, mas em entender as possibilidades que a junção do tempo, dos recursos financeiros e dos equipamentos disponíveis poderiam trazer para o projeto. “Às vezes uma pessoa faz um espetáculo com o celular, com a tecnologia mais simples, e faz mito melhor do que a pessoa que usou o mais top da tecnologia. Por que isso? Porque essa pessoa tá muito bem alinhada com o que ela pode fazer e o que ela tem em mãos e o trabalho dela nessa linguagem”, acredita a atriz, que colocou em prática na adaptação do seu projeto justamente esse entendimento.

 

Trecho do espetáculo ‘Ave de areia’ que em sua versão virtual usou recursos próprios do audiovisual

Em ‘Ave de areia’, a ideia inicial era deslocar o espetáculo para ser encenado – e gravado – em um museu. Foi justamente a preocupação com os equipamentos, a falta de estrutura cênica de um espaço como esse além do custo para equipá-lo que fez a equipe do espetáculo mudar de ideia e voltar ao teatro. A peça foi então filmada no Teatro Módulo, mas não perdeu a vontade de inovar. O espetáculo lançou mão de recursos audiovisuais como movimentação de câmera e a inserção de imagens pré-gravadas por meio de edição para explorar o máximo potencial possível. “A gente tá entendendo ainda, os vários formatos que o teatro online propõe. Não é uma coisa única, são inúmeros tipos de teatro online diferentes. Tem o teatro multitela, com tela verde, ao vivo, pré-gravado, tem o teatro que virou cinema, mas existe uma coisa que une isso pra continuar sendo teatro, tem a raiz nessa arte de palco. As pessoas estão quebrando a cabeça pra se conectar com o seu espectador, simplesmente por pensarem: estou fazendo teatro no vídeo”, defende Laura.

 

Mas é teatro?

 

A defesa de Laura dá início à discussão que talvez seja a mais presente nas conversas dos artistas de teatro desde que a pandemia os conduziu a criar na internet. Isso que se faz no isolamento é ou não teatro? Onde estão os limites que separam o que fazem os artistas do palco daquilo que é feito pelos profissionais do audiovisual, do cinema? Gestora do Teatro Módulo, onde o espetáculo de Laura foi gravado, Vadinha Moura é sincera em dizer que não tem respostas. “Se ele é teatro ou audiovisual eu não sei. Do meu ponto de vista de gestora, que estou lá, assistindo aquilo acontecer como acontece no teatro, ao vivo, a gente sente as mesmas emoções de estar assistindo o artista fazendo. Quando você vira o olhar, vê a câmera, todos os equipamentos, vê aquilo sendo transformado. A gente que tá dentro do teatro vê as duas possibilidades, o artista no palco e toda a tecnologia fazendo a transmissão. É algo que é novo, e a gente não pode perder as possibilidades do novo”, acredita Vadinha.

 

Se para muitos artistas os limites estão confusos e as perguntas sem respostas, existem aqueles que são categóricos em defender sua posição. A atriz Aicha Marques, por exemplo, acredita que o teatro ainda espera a pandemia passar para voltar a ser feito plenamente. “Existe uma linha que é nítida, abissal inquestionável. Teatro é o teatro, audiovisual é audiovisual, pelo que existe entre a obra e quem assiste. Entre a obra e quem assiste no teatro só existe o ar, porque você está em contato direto com a obra. É a arte da presença. Não se pode substituir a presença, não se pode traduzir essa percepção real, física, da presença no vídeo. É impossível. Pra mim, não tem nem o que questionar, é completamente diferente”, acredita a artista.

 

Apesar de enxergar uma clara diferença, a atriz teve no isolamento um período de produções intensas. Criou dois personagens para esquetes em suas redes sociais, escreveu e atuou em uma web série, fez um curta e a versão virtual de um espetáculo idealizado antes da pandemia. Para Aícha existem pontos que levam a confusão e ao surgimento natural da dúvida sobre se o que tem sido produzido é ou não teatro.  A artista elenca o próprio trabalho de interpretação do ator e a possibilidade de se adaptar e transpor personagens e textos do teatro para a tela como aspectos que acabam contribuindo para a sensação de que se está fazendo teatro. “Pelo vídeo, eu não posso sentir o cheiro, eu não consigo ver tridimensionalmente. Tem atores claramente geniais, em teatro que não conseguem lidar com esse audiovisual”, avalia a atriz.

Por  outro lado, o ator e dramaturgo Miguel Campelo defende que, mesmo pela internet, o teatro não deixa de ser teatro. Para o artista, que antes do isolamento desenvolvia um trabalho com teatro de rua e que também tem uma personagem drag queen, trata-se simplesmente de adaptação de uma mesma linguagem. “Acho que o teatro se diferencia pela natureza dos seus projetos, não é uma questão estética, e não é somente com a presença do espectador fisicamente diante de você que torna algo teatro. Através da história o teatro já esteve nas mais diversas plataformas. Na rua, nos palcos, nos anfiteatros, nos palcos italianos, nas estalagens, dentro dos palácios, nos bordeis. Fez-se teatro em todo tipo de lugar. Por que não se pode fazer na internet? A maneira como o teatro aborda as coisas é sempre diferente”, defende o artista.

 

Para Miguel, a relação teatro e internet é um espaço de transformação não só para a forma de se fazer teatro, mas principalmente para o modo de se estar na web. “A internet tem muita produção de conteúdo artístico audiovisual, de qualidades diversas, do entretenimento mais ligeiro, até produtos de profundidade, mas o teatro tem um procedimento ético na construção e na maneira de contar suas histórias, na sua relação com a vida pública, através de séculos, compreendendo a importância dessa linguagem artística pro desenvolvimento da sociedade. Nosso compromisso é sempre com o desenvolvimento social e humano. Então isso é um diferencial para muito além das questões estéticas”, acredita.

Reproduzir vídeo

Depois de passar pela pausa e enfim experimentar a forma online do teatro, Vivianne Laert resume o que, para ela, é o mais importante diante da polêmica. “Não sei se me encaixo nessa nova forma, não sei o que é isso e se é isso que eu quero, mas é o que temos para hoje. Então vamos fazer da melhor forma possível, ter o cuidado que a gente sempre teve na cena e poder fazer isso de uma forma que chegue até as pessoas, que comunique, que toque, que instigue. É isso que a gente quer com a nossa arte”, avalia a atriz. Vadinha Moura faz coro. “O mais louco de tudo foi ficar sem o teatro funcionar. É uma sensação bem dolorosa. Foi um ano difícil e eu tinha o medo de não saber quando a gente volta. Até hoje a gente tem essa pergunta que não quer calar. Precisei fazer alguma coisa para que aquele espaço pudesse ter vida”, diz sobre a necessidade de seguir criando e sobre os obstáculos que enfrentou por ser gestora de um dos principais teatros de Salvador.

 

Nas câmeras, o desafio

Se engana quem pensa que, para os artistas, o desafio maior está em responder em definitivo as perguntas que rondam o conceito do teatro feito na internet. Antes mesmo de começar a criar – e a entender a linguagem – é preciso lidar com outro desafio: os custos altos dos equipamentos de um lado e a falta de recursos causada, justamente, pela pausa e pela impossibilidade de trabalhar presencialmente do outro. Até os próprios teatros, que sobrevivem de oferecer estrutura para os espetáculos precisaram ultrapassar barreiras por conta dos altos custos da nova aparelhagem necessária. No caso do Teatro Módulo, foi preciso contar com parcerias. “Eu precisava pensar no teatro como um equipamento ativo. Meu medo era realmente não ter nada e fechar as portas, acabar. As pessoas precisavam saber que o Teatro existe, que o Módulo está de pé, que estamos aqui vivos, com esperança”, lembra a gestora, sobre os momentos iniciais da pandemia.

 

Para o espaço, foi preciso uma parceria com a M2 Soluções Audiovisuais, empresa que forneceu todos os equipamentos necessários para que as peças fossem filmadas em mais de um ângulo e transmitidas ao vivo do palco para a casa do público através de vídeo conferência. “Como nós não tínhamos e não podíamos comprar por serem equipamentos muito caros veio a parceria para essa parte. Assim a gente conseguiu fazer alguns espetáculos, eventos corporativos, porque precisávamos sobreviver de alguma forma. Não era suficiente para pagar as contas, mas a gente não podia também ficar parado”, conta Vadinha sem deixar de reconhecer as vantagens do teatro. “O teatro já tem uma estrutura de luz, som, uma acústica positiva, já estava pronto de alguma forma”, completa.

Reproduzir vídeo

A vantagem que os teatros tinham para adaptar seus espaços, no entanto, não era realidade para artistas independentes que trabalham sem os recursos necessários para usufruir de uma estrutura profissional. Entre os atores e atrizes os cenários e dificuldades eram os mais diversos. O ator Rafael Bulhões, por exemplo, se viu impedido de realizar a temporada de seu espetáculo Devir Gazela no Rio de Janeiro. Rafael investiu na temporada do espetáculo suas últimas economias esperando repetir em terras cariocas o burburinho que a performance tinha causado em Salvador. Dias antes da estreia veio o cancelamento em razão das medidas restritivas e o ator teve dificuldade até para voltar para casa. “Eu sempre fiz teatro a minha vida toda. E quando deu a pandemia, a única coisa que a gente escutava era que os artistas precisam se reinventar, como se a gente fosse o limão que você espreme e sai suco. E nós somos isso. Quando eu vi que era uma questão de sobrevivência, porque os teatros não iriam voltar tão cedo resolvi comprar um tripé, fiz a loucura e comprei um tripé sem ter dinheiro”, relata.

 

O tripé era o equipamento que o artista precisava para transformar a sala de sua casa em estúdio e apresentar seu espetáculo pela internet. A temporada feita online com ingressos a R$ 20 e R$ 10 entre agosto e setembro de 2020 foi suficiente para pagar o investimento no crédito e ajudar o ator no sustento básico por um tempo. “Enchi a caixa de entrada de todos os meus contatos, meus amigos e até desconhecidos com a divulgação. Teve hora que eu esgotei, um final de semana que eu não vendi nenhum ingresso, não consegui mais vender. Acho que todo mundo viu, eu consegui vender pra todo mundo que eu conhecia”, se recorda o artista, orgulhoso de ter conseguido pelo menos por um período algum retorno financeiro com seu espetáculo, mesmo que virtual. “Consegui pagar o custo do tripé e passar um tempo. Comer, me alimentar com o meu trabalho de artista”, diz.

Trecho do espetáculo Devir Gazela, encenado por Rafael Bulhões da sala de sua casa

O mesmo orgulho é dividido com a atriz Evelin Buchegguer, que fala sobre o sustento através da arte e relata que a pandemia foi para ela mais um momento de parada e reflexão. “Sempre consegui trabalhar com teatro. Sempre. Para mim é muito importante poder sobreviver do teatro. Tive momentos de pensar em fazer mestrado para poder ensinar. Chega sempre o momento em que você precisa pensar como fazer para sobreviver da nossa profissão, e muitas vezes a gente acaba tendo que fazer outras coisas fora da área da interpretação e da arte. Eu até hoje estou vivendo, graças a Deus, da arte”, se orgulha.

Diferente de Rafael, a atriz viveu na pandemia um período incomum de certa segurança financeira. Aprovada em um teste em 2019 para ser garota propaganda da empresa Neoenergia, operadora de energia elétrica da Bahia, a atriz realizou o trabalho mesmo durante a pandemia, se tornou a Dona Néia e viu o contrato de dois anos, que se encerra apenas em dezembro de 2021, como um alívio frente a tantas incertezas. “Era para ser um projeto muito maior, com viagens, entrevistas, shows, mas por conta da pandemia aconteceu de uma maneira diferente. Mesmo assim, fecharam o contrato. Entrou a pandemia e eu tinha um contrato fechado, o que não acontecia em minha vida há muito tempo”, revela a artista, sobre o aspecto financeiro do período.

Por mais diferentes que sejam as histórias de atores e atrizes baianos e a forma de enfrentar a pausa uma coisa é unânime: a necessidade e o desejo de seguir criando e em contato com a arte. “Foi um momento de coragem. Agarrei na mão do sonho, peguei na mão de tudo que eu tinha construído e segui fazendo”, diz Rafael. “Tenho feito um esforço enorme para não fraquejar. É difícil porque é o meu ar, ser atriz é como eu me expresso, como eu me posiciono, é como se realmente estivesse faltando um pedaço. Tenho muita saudade. Ao mesmo tempo, como cidadã, eu sinto que existe algo maior. Voltar a atuar é tudo para mim. Mas o que é voltar ao normal? A gente não volta mais atrás. É uma nova era para o teatro e para a vida das pessoas”, finaliza Vica. Para os artistas, diante da pausa fica a certeza de seguir criando, como for possível.

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