Em um ano em que a produção teatral baiana precisou se concentrar na internet, artistas contam como o virtual e a tecnologia interferiram e modificaram os trabalhos
As câmeras não são estranhas ao ator baiano Edu Coutinho. Ainda em 2019, antes da pandemia do novo coronavírus levar atores e atrizes do teatro para a internet, era justamente para as câmeras que Edu atuava. O ator fez sua estreia nas novelas em Bom Sucesso e esteve no ar entre novembro de 2019 e janeiro de 2020 como Fábio. Depois da experiência na televisão, veio o desejo de voltar à linguagem que o formou ator: a do teatro. “A novela foi uma experiência muito louca pra mim como ator. Logo antes da pandemia eu tinha acabado de gravar e estava com planos de fazer teatro. Já tinha fechado pauta, feito a visita técnica, contrato e a gente ia estrear em julho”, lembra.
Trecho do curta ‘Te trazer essa canção de amor’, primeira experiência virtual do ator Edu Coutinho
O projeto, que estava em fase inicial, era um texto de Thor Vaz, que o ator encenaria ao lado de Ludmila Brandão. O espetáculo teve sua estreia impedida pelo isolamento, mas foi justamente através de Thor que Edu deu os primeiros passos na linguagem do teatro virtual. “Ele começou a produzir coisas pra internet logo no início. Foi tudo muito rápido, ele escreveu o texto, nos mandou e cada um gravou. Já era esse jeito de atuar estranho, a gente imaginava a fala do outro, reagia e gravava sozinho em casa. Uma experiência bem louca porque não tinha um outro ali, de fato contracenando com a gente”, conta o artista, sobre as diferenças da linguagem. A empreitada resultou no curta-metragem “Te Trazer Essa Canção de Amor”, que foi lançado em abril de 2020 e gravado completamente no isolamento, com cada ator de sua casa.
Depois do primeiro trabalho, Edu conta que foi sendo convidado por amigos para participar de outros projetos. Cada novo chamado foi dando ao ator o entendimento do que significava azer teatro pela internet e quais desafios seria necessário enfrentar para seguir. “No início era muito difícil pra mim, tinha dores fortes de cabeça. Fiz uma oficina e quando dava 22h, minha cabeça latejava, fui entendendo que era o tempo de ficar olhando pra tela, era uma questão de visão. Então fui reduzindo, negociando mesmo a minha relação com esse espaço virtual”, relata o artista. Em paralelo às experiências de estudo e aos trabalhos com os amigos Edu deu continuidade a outro projeto: a seleção de um texto latino-americano de teatro para ser a próxima parceria com o diretor Márcio Meirelles.
Trecho do espetáculo “Do outro lado do mar”, encenado e transmitido ao vivo
A escolha de “Do outro lado do mar”, da autora salvadorenha Jorgelina Cerritos, acabou se transformando no principal projeto de Edu durante a pandemia e também em laboratório para que o artista pudesse experienciar as mudanças trazidas pela forma online de fazer teatro. “Esse processo me mostrou muitas coisas, foi muito rico em experiência, tanto como ator, porque é um outro jeito de atuar realmente diferente, quanto como produtor. Não foi uma produção difícil, mas cheia das dificuldades que o isolamento social nos impõe”, avalia. Acumulando as funções de ator e produtor, Edu se juntou a Márcio Meirelles e a atriz Andréa Elia, com quem dividia a cena, para um processo de ensaios que começou ainda em dezembro de 2020. A estreia virtual aconteceu em maio de 2021 como resultado do trabalho de uma equipe que ainda reunia profissionais na direção de transmissão, trilha sonora, cenário, assistência de direção, dentre outras funções comuns – ou novas – em uma peça de teatro.
O espetáculo estrelado por Edu e Andreia foi a quarta estreia do diretor Márcio Meirelles durante a pandemia. Antes, o encenador e gestor do Vila Velha já havia experimentado o teatro virtual com os espetáculos “Fragmentos de um teatro decomposto”, “Quem não morre não vê Deus” e “Os três Pablos”. A experiência de um ano criando pela internet permitiu ao diretor aperfeiçoar técnicas e explorar as possibilidades virtuais da melhor maneira. Para quem estava em cena, a importância da bagagem era clara. “Márcio tá realmente se divertindo, pesquisando, brincando, explorando esse território do web teatro. Sem nostalgia. Ele trabalha com o que ele tem. E ele vai explorar o máximo essas possibilidades. Agora no virtual ele já chega muito ligado no que é possível fazer, experimentar. Ele quer testar, quer brincar. Foi uma coisa interessante desse processo, essa capacidade de conduzir essa orquestra, que é a equipe, do espetáculo. E como ele conseguiu se adaptar pro virtual e transformar isso num grande espaço de experimentação, de diversão. E a gente também embarca”, observa o ator sobre o processo da peça.
Teaser de divulgação de “Do outro lado do mar” revela detalhes de bastidores.
Entre as escolhas feitas para o espetáculo, a decisão de trabalhar com transmissão ao vivo e com o chamado chroma key, técnica que utiliza um fundo verde para possibilitar a inserção de projeções e cenários feitos pelo computador. Assim, a cada um dos quatro domingos da temporada todo o cenário era remontado e, no horário marcado, os atores encenavam de suas casas o espetáculo. Sozinhos com a câmera, se juntavam apenas virtualmente à medida que a transmissão era operada, também ao vivo, no esforço de se chegar o mais próximo possível da experiência já conhecida do teatro. “É um desafio, exige uma concentração danada. Eu tô olhando pra parede, atrás de mim tem uma tela verde. Sempre tem a possibilidade da internet cair. Na primeira apresentação, a cada pausa que a Andreia dava, eu tinha certeza que a internet tinha caído. Quando a gente tá no teatro, a gente resolve, caiu a luz, você fala com o público. No teatro virtual, caiu a internet você não faz, não existe mais pra quem tá assistindo. Mas é teatro, porque estamos alí”, reflete o artista.
Para cada função, uma diversão
A escolha pela transmissão ao vivo criou desafios não só para o ator em cena, mas também para a porção produtor de Edu Coutinho, que precisou se responsabilizar pela construção de toda estrutura de cenário e transmissão em sua própria casa e também na sala da casa da atriz Andreia Elia, com quem contracenava. “Montei o cenário de Andreia, montei o chroma na casa dela. Tem todo um trabalho que é muito diferente. Lembro que quando eu produzi em teatro, tá tudo ali. Por mais que os pepinos surjam, a gente resolve na hora, mais rápido, tem uma força coletiva que surge naturalmente. Você tá no teatro, tem os técnicos do teatro, a equipe artística que tá ali junto, trabalhando. No máximo, você vai correndo, compra uma fita crepe na esquina. Produzir a distância é bem diferente, a gente tem que entrar na casa da pessoa, lidar com a dinâmica daquela casa, com os horários. É muito doido”, relata Coutinho.
O ator e produtor de “Do outro lado do mar” não foi o único a sentir as diferenças que o digital impôs ao teatro. A cenógrafa e diretora de arte Renata Mota, e o figurinista e maquiador Mauricio Martins trabalharam juntos na equipe de outro espetáculo e relatam que o formato online modificou profundamente a forma com que cada profissional passou a desempenhar sua função. “Foi difícil adaptar. Eu sou um profissional de toque, de experimentar as coisas no ator, manusear os materiais, ver as possibilidades de movimentação, ajudar ele a ficar bem, trazendo a possibilidade de um figurino que seja confortável”, comenta Mauricio. “Foi tudo feito a distância, precisávamos pensar como construir tudo da forma mais simples possível, o que limita o trabalho, mas é um desafio”, completa Renata.
“Alimentando as feras” teve texto adaptado para incluir pandemia na história e justificar formato virtual
O espetáculo em que Renata e Maurício trabalharam juntos foi idealizado e escrito pela atriz Aicha Marques. Em “Alimentando as feras”, três mulheres participam de uma sessão de terapia de grupo que foi transportada para o ambiente virtual justamente em razão da pandemia. Para realizar o espetáculo, cada atriz transformou um canto de sua própria casa em cenário e usou peças do próprio guarda-roupa em conjunto com itens do acervo Boca de Cena, enviados para cada uma por Mauricio. “Fiz uma seleção de opções de roupa, encaminhei para elas e elas provaram em casa. Online a gente ia orientando que roupa colocar, que cabelo, que maquiagem, tudo a distância”, se recorda o profissional.
Mauricio Martins fala sobre o funcionamento do acervo de figurinos “Boca de cena” durante a pandemia; confira esse e outros depoimentos em nossa Plateia de Impressões
Assinando além da cenografia, toda direção de arte do espetáculo, Renta explica que o formato virtual de teatro modificou não só a forma de executar o trabalho, mas toda sua organização e planejamento. “Os próprios protocolos, as limitações, todos os cuidados necessários afetam o projeto. A redução de equipe, por exemplo, acaba fazendo a gente pensar em um projeto que seja mais simples, que exija uma equipe menor. Muda a forma de pensar o cronograma. O que antes a gente fazia em uma semana, precisávamos inserir uma quantidade de dias a mais porque a gente tem fatores que influenciam, como uma volta pra casa mais cedo, uma loja ou outra que não vai poder abrir”, detalha. “Não é a mesma coisa, mas foi muito emocionante, potente, entender que a gente podia fazer. Deu o gás de dizer vamos fazer arte agora e não postergar para quando tudo voltar”, acredita Mota.
Vários teatros
A primeira sessão virtual de “Alimentando as feras” aconteceu em abril de 2021, mas o processo de construção do espetáculo começou ainda antes do isolamento. O texto escrito por Aicha já existia antes da chegada da pandemia, mas precisou ser modificado quando foi aprovado na Lei Aldir Blanc, criada como auxílio emergencial para os artistas. A reunião da terapia que aconteceria presencialmente foi transformada em um encontro virtual para incluir a pandemia dentro da história e possibilitar a realização do projeto dentro dos prazos exigidos pela Aldir Blanc. “Achávamos que a gente ia gravar a peça no teatro, que nós iríamos ficar separadas uma da outra uns três metros mas fazer no teatro, porque a gente queria fazer teatro filmado. Cada uma com uma câmera, uma mesa de corte pra fazer o corte ali na hora, para ser meio ao vivo. Quando a gente viu janeiro foi um boom absurdo de casos de Covid. Não podia mais ser presencial. Então, eu pensei, já que é uma reunião de terapia de grupo, por que não faço uma reunião de terapia de grupo no Zoom?”, relata.
Trecho de “O mundo acabou?”, curta criado já durante o isolamento que trata justamente de teatro e pandemia
A atriz explica que, enquanto artista, acredita ser importante considerar o contexto em que está inserida como parte de seus trabalhos. A vontade de refletir sobre o agora a levou a criar diversos produtos artísticos que tinham a pandemia como pano de fundo. Além da alteração em “Alimentando as feras”, Aicha criou ainda uma web série e o curta metragem “O mundo acabou?” que acompanha justamente uma trupe de teatro que tem seus trabalhos interrompidos pelo isolamento. “É importante a gente se mobilizar pra falar, porque nós atores somos cronistas do nosso tempo. Os acontecimentos da própria vida, também carregam essa finitude que é própria do teatro. A minha frequência é de trazer o que tá acontecendo no mundo agora para o meu trabalho. Eu tenho essa, essa necessidade”, conta a artista.
Outro ator que escolheu usar a pandemia como pano de fundo para a criação de um novo espetáculo foi Frank Menezes. O artista criou, já no isolamento, a história de Pai Lavoisier, um religioso que se via às voltas com a necessidade de antecipar suas obrigações de celebração, já que a prefeitura havia resolvido antecipar feriados de cunho religioso. No espetáculo, um fato concreto e real foi o ponto de partida para Frank refletir e brincar sobre os efeitos causados pelo isolamento. A história, que começou a nascer quando Frank gravou um áudio para amigos fazendo a piada sobre a antecipação, logo virou um novo monólogo dirigido por Marcelo Praddo. Por escolha do artista, Pai Lavoisier só subiu aos palcos uma vez: foi transmitido ao vivo, direto do Teatro Módulo, em formato de vídeo conferência. “Gostei de fazer ele, me incomoda profundamente ter feito uma vez só. Gostaria muito de voltar a cartaz, mas não quis fazer de casa. Se eu fosse fazer meu espetáculo dentro de casa, estaria fazendo menos teatro ainda. Eu estaria fazendo algo como a apresentação de um youtuber, que consegue milhões de seguidores em minutos. Como é que você faz uma peça de uma hora e dez? É você também fazer concorrência com outras áreas. Não é só o trabalho de dança e teatro que competiria no mesmo horário”, defende o ator.
Pai Lavoisier foi o espetáculo criado por Frank Menezes durante a pandemia
Para cada artista, portanto, o limite de até onde o isolamento, a pandemia, e todo o contexto trazido pela necessidade de se fazer teatro pela internet pôde interferir em suas obras e processos de criação é completamente diferente e particular. Enquanto os projetos de Aicha Marques e do diretor Márcio Meirelles abraçam completamente o virtual e as novas possibilidades, existem aqueles que resolveram impor barreiras para essa interferência em suas criações. É o caso, por exemplo, do ator Ricardo Castro. Além de encenar espetáculos do seu repertório por meio de transmissões virtuais, Castro criou novos textos já no isolamento, mas sem modificar seu processo criativo. “Não estou permitindo ainda que o virtual transforme as escolhas do espetáculo. Muitas ferramentas funcionam bem, mas eu não vou atrelar a minha criação a isso, vou adaptar a minha criação a isso. Por hora eu penso assim, crio como eu sempre criei e adapto para essa realidade bidimensional. Eu sigo as etapas de um espetáculo presencial, assim ele será meu, terei como eu sempre tive o domínio do trabalho, da criação e depois faço uma última etapa, que é a de adaptação pra essa linguagem”, conta o artista sobre o próprio processo, que deu origem, dentre outros espetáculos a “Bruta Flor”, inspirado na obra de Caetano Veloso.
De olho no futuro
As barreiras colocadas por Ricardo Castro no que diz respeito à interferência digital em seu trabalho são tão claras que fizeram com que o ator adiasse um projeto que era também um sonho. Em 2021, o artista completou 50 anos e um espetáculo especial em comemoração já estava completamente idealizado. A celebração, no entanto, vai precisar esperar a reabertura dos teatros. “Sonhei, durante oito anos, comemorar meus cinquenta anos estreando um espetáculo que eu venho preparando ao longo desse tempo. Diante da iminência de que não farei como eu desejaria, como desejo, eu não vou fazer agora. Quem já tá trabalhando há oito anos pra fazer uma peça, espera mais um ano, ou mais dois. Ou mais quatro. Mas esse trabalho que foi pensado durante todo esse tempo, contando com a presença física da plateia eu me nego a adaptar pra um teatro remoto”, relata o ator. Semanas depois da entrevista para esta reportagem, o ator anunciou a estreia do espetáculo, já com plateia presencial, para setembro de 2021.
Quando questionado sobre os aspectos positivos do teatro pela internet, Ricardo é categórico em dizer que existe apenas um: a expansão da plateia. Esta é, inclusive, uma sensação quase unânime entre aqueles que experimentaram o teatro virtual. “Se eu fosse os teatros, continuaria adotando as câmeras. Eu cobraria mais barato o virtual, filmaria com três câmeras faria a mesa de corte. Apostaria nesse teatro virtual. É mais um negócio pra se absorver”, concorda Aicha Marques.
Em “Do outro lado do mar”, a expansão da plateia ultrapassou fronteiras. A montagem dirigida por Márcio Meirelles foi a primeira feita no Brasil para o texto, mas a peça já havia ganhado versões em outro sete países. Os elencos e equipes das montagens anteriores foram convidados a assistir a versão brasileira, trazendo uma plateia internacional que não seria possível se não fosse o formato virtual do espetáculo. “No mundo inteiro vai ter sempre a cadeira virtual, você vai poder comprar e acompanhar. Acho que o que muda é isso. Essa possibilidade de a gente fazer pra quem tá ali e pra quem tá em outros lugares ao mesmo tempo”, acredita Edu Coutinho.
As novidades do formato virtual, no entanto, não passam apenas pela possibilidade de atingir um público maior do que os limites geográficos da cidade onde está a equipe do espetáculo. As peças de teatro feitas na internet também trazem consigo um registro que antes não se pensava. Agora é possível salvar a reação da plateia, que fica registrada nos chats acoplados às plataformas de transmissão. “O teatro virtual nos dá esse documento, que são as reações, os comentários, os aplausos, documentados em um arquivo de texto. As reações eram muito diferentes, muito engraçadas”, diz Edu, lembrando o episódio em que um espectador duvidou de que o espetáculo era transmitido ao vivo. “Se isso for ao vivo isso é nível Broadway”, comentou o integrante da plateia.
Versão brasileira de “Do outro lado do mar” recebeu plateia internacional
Entre tantas novidades, a relação com a plateia passa, ainda, pelos desafios de atrair o público a comprar o ingresso e se manter conectado durante todo o espetáculo. “Com tanta coisa acontecendo na internet, fica mais difícil pra gente que precisa vender o ingresso. É muito difícil você motivar alguém a ver uma peça. Quando a gente começa a ter teatro filmado a rodo e que tem lá o dia inteiro disponível não se valoriza tanto”, diz Edu. A percepção de uma concorrência ampliada fez com que o artista optasse por fazer o espetáculo apenas uma vez por semana. Oferecer uma temporada com apenas quatro sessões foi parte da estratégia para passar ao público a ideia de escassez e de urgência em se assistir ao espetáculo. “A gente faz pro público e é bom que a gente continue fazendo pro público. A gente vê muito espetáculo que não tá preocupado em vender ingresso, eu acho que a gente tem que estar preocupado em vender ingresso, em vender esse produto que a gente tem, que é o nosso trabalho, que é o nosso espetáculo”, avalia Edu.
Mesmo diante de tantos aspectos para considerar, para os artistas, manter viva a relação com a plateia é fundamental, principalmente diante do isolamento forçado. “Pra mim entra numa urgência de vida mesmo. A arte tem nos mantido vivos, foi muito importante, tem sido muito importante nesse período de morte, nesse período de isolamento, tem sido esse respiro. Que a gente possa voltar ao teatro, em segurança, pra continuar fazendo teatro. Mal posso esperar por essa segurança de sair, de viver”, deseja o ator.
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Em um ano em que a produção teatral baiana precisou se concentrar na internet, artistas contam como o virtual e a tecnologia interferiram e modificaram os trabalhos
As câmeras não são estranhas ao ator baiano Edu Coutinho. Ainda em 2019, antes da pandemia do novo coronavírus levar atores e atrizes do teatro para a internet, era justamente para as câmeras que Edu atuava. O ator fez sua estreia nas novelas em Bom Sucesso e esteve no ar entre novembro de 2019 e janeiro de 2020 como Fábio. Depois da experiência na televisão, veio o desejo de voltar à linguagem que o formou ator: a do teatro. “A novela foi uma experiência muito louca pra mim como ator. Logo antes da pandemia eu tinha acabado de gravar e estava com planos de fazer teatro. Já tinha fechado pauta, feito a visita técnica, contrato e a gente ia estrear em julho”, lembra.
Trecho do curta ‘Te trazer essa canção de amor’, primeira experiência virtual do ator Edu Coutinho
O projeto, que estava em fase inicial, era um texto de Thor Vaz, que o ator encenaria ao lado de Ludmila Brandão. O espetáculo teve sua estreia impedida pelo isolamento, mas foi justamente através de Thor que Edu deu os primeiros passos na linguagem do teatro virtual. “Ele começou a produzir coisas pra internet logo no início. Foi tudo muito rápido, ele escreveu o texto, nos mandou e cada um gravou. Já era esse jeito de atuar estranho, a gente imaginava a fala do outro, reagia e gravava sozinho em casa. Uma experiência bem louca porque não tinha um outro ali, de fato contracenando com a gente”, conta o artista, sobre as diferenças da linguagem. A empreitada resultou no curta-metragem “Te Trazer Essa Canção de Amor”, que foi lançado em abril de 2020 e gravado completamente no isolamento, com cada ator de sua casa.
Depois do primeiro trabalho, Edu conta que foi sendo convidado por amigos para participar de outros projetos. Cada novo chamado foi dando ao ator o entendimento do que significava azer teatro pela internet e quais desafios seria necessário enfrentar para seguir. “No início era muito difícil pra mim, tinha dores fortes de cabeça. Fiz uma oficina e quando dava 22h, minha cabeça latejava, fui entendendo que era o tempo de ficar olhando pra tela, era uma questão de visão. Então fui reduzindo, negociando mesmo a minha relação com esse espaço virtual”, relata o artista. Em paralelo às experiências de estudo e aos trabalhos com os amigos Edu deu continuidade a outro projeto: a seleção de um texto latino-americano de teatro para ser a próxima parceria com o diretor Márcio Meirelles.
Trecho do espetáculo “Do outro lado do mar”, encenado e transmitido ao vivo
A escolha de “Do outro lado do mar”, da autora salvadorenha Jorgelina Cerritos, acabou se transformando no principal projeto de Edu durante a pandemia e também em laboratório para que o artista pudesse experienciar as mudanças trazidas pela forma online de fazer teatro. “Esse processo me mostrou muitas coisas, foi muito rico em experiência, tanto como ator, porque é um outro jeito de atuar realmente diferente, quanto como produtor. Não foi uma produção difícil, mas cheia das dificuldades que o isolamento social nos impõe”, avalia. Acumulando as funções de ator e produtor, Edu se juntou a Márcio Meirelles e a atriz Andréa Elia, com quem dividia a cena, para um processo de ensaios que começou ainda em dezembro de 2020. A estreia virtual aconteceu em maio de 2021 como resultado do trabalho de uma equipe que ainda reunia profissionais na direção de transmissão, trilha sonora, cenário, assistência de direção, dentre outras funções comuns – ou novas – em uma peça de teatro.
O espetáculo estrelado por Edu e Andreia foi a quarta estreia do diretor Márcio Meirelles durante a pandemia. Antes, o encenador e gestor do Vila Velha já havia experimentado o teatro virtual com os espetáculos “Fragmentos de um teatro decomposto”, “Quem não morre não vê Deus” e “Os três Pablos”. A experiência de um ano criando pela internet permitiu ao diretor aperfeiçoar técnicas e explorar as possibilidades virtuais da melhor maneira. Para quem estava em cena, a importância da bagagem era clara. “Márcio tá realmente se divertindo, pesquisando, brincando, explorando esse território do web teatro. Sem nostalgia. Ele trabalha com o que ele tem. E ele vai explorar o máximo essas possibilidades. Agora no virtual ele já chega muito ligado no que é possível fazer, experimentar. Ele quer testar, quer brincar. Foi uma coisa interessante desse processo, essa capacidade de conduzir essa orquestra, que é a equipe, do espetáculo. E como ele conseguiu se adaptar pro virtual e transformar isso num grande espaço de experimentação, de diversão. E a gente também embarca”, observa o ator sobre o processo da peça.
Teaser de divulgação de “Do outro lado do mar” revela detalhes de bastidores.
Entre as escolhas feitas para o espetáculo, a decisão de trabalhar com transmissão ao vivo e com o chamado chroma key, técnica que utiliza um fundo verde para possibilitar a inserção de projeções e cenários feitos pelo computador. Assim, a cada um dos quatro domingos da temporada todo o cenário era remontado e, no horário marcado, os atores encenavam de suas casas o espetáculo. Sozinhos com a câmera, se juntavam apenas virtualmente à medida que a transmissão era operada, também ao vivo, no esforço de se chegar o mais próximo possível da experiência já conhecida do teatro. “É um desafio, exige uma concentração danada. Eu tô olhando pra parede, atrás de mim tem uma tela verde. Sempre tem a possibilidade da internet cair. Na primeira apresentação, a cada pausa que a Andreia dava, eu tinha certeza que a internet tinha caído. Quando a gente tá no teatro, a gente resolve, caiu a luz, você fala com o público. No teatro virtual, caiu a internet você não faz, não existe mais pra quem tá assistindo. Mas é teatro, porque estamos alí”, reflete o artista.
Para cada função, uma diversão
A escolha pela transmissão ao vivo criou desafios não só para o ator em cena, mas também para a porção produtor de Edu Coutinho, que precisou se responsabilizar pela construção de toda estrutura de cenário e transmissão em sua própria casa e também na sala da casa da atriz Andreia Elia, com quem contracenava. “Montei o cenário de Andreia, montei o chroma na casa dela. Tem todo um trabalho que é muito diferente. Lembro que quando eu produzi em teatro, tá tudo ali. Por mais que os pepinos surjam, a gente resolve na hora, mais rápido, tem uma força coletiva que surge naturalmente. Você tá no teatro, tem os técnicos do teatro, a equipe artística que tá ali junto, trabalhando. No máximo, você vai correndo, compra uma fita crepe na esquina. Produzir a distância é bem diferente, a gente tem que entrar na casa da pessoa, lidar com a dinâmica daquela casa, com os horários. É muito doido”, relata Coutinho.
O ator e produtor de “Do outro lado do mar” não foi o único a sentir as diferenças que o digital impôs ao teatro. A cenógrafa e diretora de arte Renata Mota, e o figurinista e maquiador Mauricio Martins trabalharam juntos na equipe de outro espetáculo e relatam que o formato online modificou profundamente a forma com que cada profissional passou a desempenhar sua função. “Foi difícil adaptar. Eu sou um profissional de toque, de experimentar as coisas no ator, manusear os materiais, ver as possibilidades de movimentação, ajudar ele a ficar bem, trazendo a possibilidade de um figurino que seja confortável”, comenta Mauricio. “Foi tudo feito a distância, precisávamos pensar como construir tudo da forma mais simples possível, o que limita o trabalho, mas é um desafio”, completa Renata.
“Alimentando as feras” teve texto adaptado para incluir pandemia na história e justificar formato virtual
O espetáculo em que Renata e Maurício trabalharam juntos foi idealizado e escrito pela atriz Aicha Marques. Em “Alimentando as feras”, três mulheres participam de uma sessão de terapia de grupo que foi transportada para o ambiente virtual justamente em razão da pandemia. Para realizar o espetáculo, cada atriz transformou um canto de sua própria casa em cenário e usou peças do próprio guarda-roupa em conjunto com itens do acervo Boca de Cena, enviados para cada uma por Mauricio. “Fiz uma seleção de opções de roupa, encaminhei para elas e elas provaram em casa. Online a gente ia orientando que roupa colocar, que cabelo, que maquiagem, tudo a distância”, se recorda o profissional.
Mauricio Martins fala sobre o funcionamento do acervo de figurinos “Boca de cena” durante a pandemia; confira esse e outros depoimentos em nossa Plateia de Impressões
Assinando além da cenografia, toda direção de arte do espetáculo, Renta explica que o formato virtual de teatro modificou não só a forma de executar o trabalho, mas toda sua organização e planejamento. “Os próprios protocolos, as limitações, todos os cuidados necessários afetam o projeto. A redução de equipe, por exemplo, acaba fazendo a gente pensar em um projeto que seja mais simples, que exija uma equipe menor. Muda a forma de pensar o cronograma. O que antes a gente fazia em uma semana, precisávamos inserir uma quantidade de dias a mais porque a gente tem fatores que influenciam, como uma volta pra casa mais cedo, uma loja ou outra que não vai poder abrir”, detalha. “Não é a mesma coisa, mas foi muito emocionante, potente, entender que a gente podia fazer. Deu o gás de dizer vamos fazer arte agora e não postergar para quando tudo voltar”, acredita Mota.
Vários teatros
A primeira sessão virtual de “Alimentando as feras” aconteceu em abril de 2021, mas o processo de construção do espetáculo começou ainda antes do isolamento. O texto escrito por Aicha já existia antes da chegada da pandemia, mas precisou ser modificado quando foi aprovado na Lei Aldir Blanc, criada como auxílio emergencial para os artistas. A reunião da terapia que aconteceria presencialmente foi transformada em um encontro virtual para incluir a pandemia dentro da história e possibilitar a realização do projeto dentro dos prazos exigidos pela Aldir Blanc. “Achávamos que a gente ia gravar a peça no teatro, que nós iríamos ficar separadas uma da outra uns três metros mas fazer no teatro, porque a gente queria fazer teatro filmado. Cada uma com uma câmera, uma mesa de corte pra fazer o corte ali na hora, para ser meio ao vivo. Quando a gente viu janeiro foi um boom absurdo de casos de Covid. Não podia mais ser presencial. Então, eu pensei, já que é uma reunião de terapia de grupo, por que não faço uma reunião de terapia de grupo no Zoom?”, relata.
Trecho de “O mundo acabou?”, curta criado já durante o isolamento que trata justamente de teatro e pandemia
A atriz explica que, enquanto artista, acredita ser importante considerar o contexto em que está inserida como parte de seus trabalhos. A vontade de refletir sobre o agora a levou a criar diversos produtos artísticos que tinham a pandemia como pano de fundo. Além da alteração em “Alimentando as feras”, Aicha criou ainda uma web série e o curta metragem “O mundo acabou?” que acompanha justamente uma trupe de teatro que tem seus trabalhos interrompidos pelo isolamento. “É importante a gente se mobilizar pra falar, porque nós atores somos cronistas do nosso tempo. Os acontecimentos da própria vida, também carregam essa finitude que é própria do teatro. A minha frequência é de trazer o que tá acontecendo no mundo agora para o meu trabalho. Eu tenho essa, essa necessidade”, conta a artista.
Outro ator que escolheu usar a pandemia como pano de fundo para a criação de um novo espetáculo foi Frank Menezes. O artista criou, já no isolamento, a história de Pai Lavoisier, um religioso que se via às voltas com a necessidade de antecipar suas obrigações de celebração, já que a prefeitura havia resolvido antecipar feriados de cunho religioso. No espetáculo, um fato concreto e real foi o ponto de partida para Frank refletir e brincar sobre os efeitos causados pelo isolamento. A história, que começou a nascer quando Frank gravou um áudio para amigos fazendo a piada sobre a antecipação, logo virou um novo monólogo dirigido por Marcelo Praddo. Por escolha do artista, Pai Lavoisier só subiu aos palcos uma vez: foi transmitido ao vivo, direto do Teatro Módulo, em formato de vídeo conferência. “Gostei de fazer ele, me incomoda profundamente ter feito uma vez só. Gostaria muito de voltar a cartaz, mas não quis fazer de casa. Se eu fosse fazer meu espetáculo dentro de casa, estaria fazendo menos teatro ainda. Eu estaria fazendo algo como a apresentação de um youtuber, que consegue milhões de seguidores em minutos. Como é que você faz uma peça de uma hora e dez? É você também fazer concorrência com outras áreas. Não é só o trabalho de dança e teatro que competiria no mesmo horário”, defende o ator.
Pai Lavoisier foi o espetáculo criado por Frank Menezes durante a pandemia
Para cada artista, portanto, o limite de até onde o isolamento, a pandemia, e todo o contexto trazido pela necessidade de se fazer teatro pela internet pôde interferir em suas obras e processos de criação é completamente diferente e particular. Enquanto os projetos de Aicha Marques e do diretor Márcio Meirelles abraçam completamente o virtual e as novas possibilidades, existem aqueles que resolveram impor barreiras para essa interferência em suas criações. É o caso, por exemplo, do ator Ricardo Castro. Além de encenar espetáculos do seu repertório por meio de transmissões virtuais, Castro criou novos textos já no isolamento, mas sem modificar seu processo criativo. “Não estou permitindo ainda que o virtual transforme as escolhas do espetáculo. Muitas ferramentas funcionam bem, mas eu não vou atrelar a minha criação a isso, vou adaptar a minha criação a isso. Por hora eu penso assim, crio como eu sempre criei e adapto para essa realidade bidimensional. Eu sigo as etapas de um espetáculo presencial, assim ele será meu, terei como eu sempre tive o domínio do trabalho, da criação e depois faço uma última etapa, que é a de adaptação pra essa linguagem”, conta o artista sobre o próprio processo, que deu origem, dentre outros espetáculos a “Bruta Flor”, inspirado na obra de Caetano Veloso.
De olho no futuro
As barreiras colocadas por Ricardo Castro no que diz respeito à interferência digital em seu trabalho são tão claras que fizeram com que o ator adiasse um projeto que era também um sonho. Em 2021, o artista completou 50 anos e um espetáculo especial em comemoração já estava completamente idealizado. A celebração, no entanto, vai precisar esperar a reabertura dos teatros. “Sonhei, durante oito anos, comemorar meus cinquenta anos estreando um espetáculo que eu venho preparando ao longo desse tempo. Diante da iminência de que não farei como eu desejaria, como desejo, eu não vou fazer agora. Quem já tá trabalhando há oito anos pra fazer uma peça, espera mais um ano, ou mais dois. Ou mais quatro. Mas esse trabalho que foi pensado durante todo esse tempo, contando com a presença física da plateia eu me nego a adaptar pra um teatro remoto”, relata o ator. Semanas depois da entrevista para esta reportagem, o ator anunciou a estreia do espetáculo, já com plateia presencial, para setembro de 2021.
Quando questionado sobre os aspectos positivos do teatro pela internet, Ricardo é categórico em dizer que existe apenas um: a expansão da plateia. Esta é, inclusive, uma sensação quase unânime entre aqueles que experimentaram o teatro virtual. “Se eu fosse os teatros, continuaria adotando as câmeras. Eu cobraria mais barato o virtual, filmaria com três câmeras faria a mesa de corte. Apostaria nesse teatro virtual. É mais um negócio pra se absorver”, concorda Aicha Marques.
Em “Do outro lado do mar”, a expansão da plateia ultrapassou fronteiras. A montagem dirigida por Márcio Meirelles foi a primeira feita no Brasil para o texto, mas a peça já havia ganhado versões em outro sete países. Os elencos e equipes das montagens anteriores foram convidados a assistir a versão brasileira, trazendo uma plateia internacional que não seria possível se não fosse o formato virtual do espetáculo. “No mundo inteiro vai ter sempre a cadeira virtual, você vai poder comprar e acompanhar. Acho que o que muda é isso. Essa possibilidade de a gente fazer pra quem tá ali e pra quem tá em outros lugares ao mesmo tempo”, acredita Edu Coutinho.
As novidades do formato virtual, no entanto, não passam apenas pela possibilidade de atingir um público maior do que os limites geográficos da cidade onde está a equipe do espetáculo. As peças de teatro feitas na internet também trazem consigo um registro que antes não se pensava. Agora é possível salvar a reação da plateia, que fica registrada nos chats acoplados às plataformas de transmissão. “O teatro virtual nos dá esse documento, que são as reações, os comentários, os aplausos, documentados em um arquivo de texto. As reações eram muito diferentes, muito engraçadas”, diz Edu, lembrando o episódio em que um espectador duvidou de que o espetáculo era transmitido ao vivo. “Se isso for ao vivo isso é nível Broadway”, comentou o integrante da plateia.
Versão brasileira de “Do outro lado do mar” recebeu plateia internacional
Entre tantas novidades, a relação com a plateia passa, ainda, pelos desafios de atrair o público a comprar o ingresso e se manter conectado durante todo o espetáculo. “Com tanta coisa acontecendo na internet, fica mais difícil pra gente que precisa vender o ingresso. É muito difícil você motivar alguém a ver uma peça. Quando a gente começa a ter teatro filmado a rodo e que tem lá o dia inteiro disponível não se valoriza tanto”, diz Edu. A percepção de uma concorrência ampliada fez com que o artista optasse por fazer o espetáculo apenas uma vez por semana. Oferecer uma temporada com apenas quatro sessões foi parte da estratégia para passar ao público a ideia de escassez e de urgência em se assistir ao espetáculo. “A gente faz pro público e é bom que a gente continue fazendo pro público. A gente vê muito espetáculo que não tá preocupado em vender ingresso, eu acho que a gente tem que estar preocupado em vender ingresso, em vender esse produto que a gente tem, que é o nosso trabalho, que é o nosso espetáculo”, avalia Edu.
Mesmo diante de tantos aspectos para considerar, para os artistas, manter viva a relação com a plateia é fundamental, principalmente diante do isolamento forçado. “Pra mim entra numa urgência de vida mesmo. A arte tem nos mantido vivos, foi muito importante, tem sido muito importante nesse período de morte, nesse período de isolamento, tem sido esse respiro. Que a gente possa voltar ao teatro, em segurança, pra continuar fazendo teatro. Mal posso esperar por essa segurança de sair, de viver”, deseja o ator.
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